A exclusão das lideranças Indígenas na UFPR e a perpetuação da tutela

A Universidade Federal do Paraná (UFPR), decana das instituições de ensino superior do Brasil, frequentemente se posiciona como um farol de universalidade e equidade. Contudo, essa narrativa é confrontada pela prática institucional no que tange aos povos indígenas. Este artigo visa denunciar a exclusão sistemática das lideranças indígenas constituídas e respeitadas – como as dos povos Kaingang e Guarani, que habitam o território há milênios – dos debates e processos decisórios que afetam diretamente suas comunidades. Essa exclusão não é um mero lapso administrativo, mas sim a perpetuação de um modelo histórico de tutela, que nega a autonomia indígena e impede a reparação histórica devida.

O Brasil é um país de imensa diversidade, abrigando 391 etnias indígenas que falam 295 línguas [7]. No entanto, essa pluralidade é minimamente representada no ensino superior, onde os estudantes indígenas ainda são uma minoria, e o aumento de vagas, especialmente em áreas cruciais para o desenvolvimento das aldeias (como Saúde e Educação), não acompanha a demanda e a necessidade de formação de novos profissionais indígenas (líderes, sábios, professores). Cada acadêmico indígena carrega a responsabilidade e a representação de seu povo, e a universidade deve reconhecer essa dimensão coletiva e política de sua presença.

O Paradoxo da Tutela Institucional

A crítica central reside no paradoxo de uma instituição que, ao mesmo tempo em que promove políticas afirmativas de acesso (como o vestibular indígena ou cotas), exclui as vozes soberanas dos povos originários de seus fóruns de decisão. Ao tomar decisões por nós, sem a devida consulta, a universidade reproduz a lógica colonial que historicamente nos tratou como incapazes, como “menores” sob tutela estatal. Essa atitude ignora a complexidade e a legitimidade das estruturas políticas indígenas, desrespeitando as lideranças que são reconhecidas por seus tratados e costumes. O efeito prático é o branqueamento do debate e das políticas, onde a perspectiva indígena é filtrada ou substituída por uma visão acadêmica e burocrática, desprovida da legitimidade e do conhecimento ancestral que só as lideranças podem oferecer.

A liderança indígena Ailton Krenak aponta que “as universidades, as instituições relevantes do Ocidente, só fazem perpetuar o colonialismo” [8]. Essa perpetuação se manifesta no racismo institucional que, mesmo sob o pretexto da inclusão, marginaliza as estruturas de poder e conhecimento indígenas. A presença indígena na UFPR, embora crescente, ainda enfrenta desafios que remontam à falta de diálogo e à persistência de práticas tutelares [5, 6].

Fundamentação Legal e a Exigência de Consulta Prévia

A postura da UFPR, ao decidir sobre questões indígenas sem a participação de suas lideranças, viola preceitos legais e internacionais que o Brasil é signatário.

1. A Constituição Federal de 1988

A Constituição Cidadã reconheceu a organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas, e seus direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam (Art. 231) [1]. Este reconhecimento implica a autonomia para gerir seus próprios assuntos. Qualquer política que afete a vida indígena, incluindo as educacionais, deve respeitar essa autonomia.

2. A Convenção nº 169 da OIT

Ratificada pelo Brasil, a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) é o principal instrumento legal que exige a Consulta Prévia, Livre e Informada (CPLI) [2]. O Artigo 6º estabelece que os governos devem:

“a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;

b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos no mesmo grau que outros setores da população, e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições eletivas e organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes concernem.”

Ao implementar políticas que afetam a vida acadêmica e social dos estudantes indígenas, a UFPR está, indiretamente, aplicando medidas administrativas que afetam diretamente esses povos. A ausência de consulta às lideranças constitui uma clara violação do direito à CPLI.

3. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (UNDRIP)

A UNDRIP reforça o direito dos povos indígenas de conservar e reforçar suas próprias instituições políticas (Art. 5º) e o direito de participar plenamente, se o desejarem, em todos os níveis de tomada de decisões em assuntos que os afetem (Art. 18º) [3]. A exclusão das lideranças é uma negação direta desses direitos. A própria discussão sobre a educação superior indígena no Brasil aponta para a necessidade de valorização da cultura e da autonomia como fios condutores da política [4].

A Reparação Histórica como Imperativo

A universidade, como espaço de produção de conhecimento e crítica social, tem o dever ético e político de promover a reparação histórica. Isso significa ir além da inclusão numérica e criar um ambiente onde os saberes, as línguas e as estruturas políticas indígenas sejam valorizados e integrados.

A pauta indígena na universidade não pode ser apenas sobre “acesso” e “permanência” sob as regras do “não-indígena”. Deve ser sobre autonomia, interculturalidade e descolonização. A universidade deve ser um espaço para promover a agenda indígena, reconhecendo por exemplo, que os povos Kaingang e Guarani, com seus 3 mil anos de história neste território, são os verdadeiros mestres e guardiões do conhecimento sobre esta terra.

A estagnação no aumento de vagas, principalmente em cursos estratégicos para as comunidades, como Medicina, Odontologia, Enfermagem e Educação, Licenciaturas Interculturais, é um ponto crítico. A formação de profissionais nessas áreas é vital para suprir as carências das aldeias, e a universidade, ao não expandir essas oportunidades, falha em seu papel de agente de desenvolvimento social e de reparação histórica. O acadêmico indígena não busca apenas um diploma individual, mas sim a capacitação para servir e fortalecer seu povo. A universidade deve, portanto, dialogar com as lideranças para identificar e suprir essas demandas deficitárias.

A UFPR precisa urgentemente revisar suas práticas e romper com o ranço tutelar. A verdadeira equidade só será alcançada quando as lideranças indígenas forem reconhecidas como parceiras legítimas e soberanas no debate universitário. A inclusão de suas vozes não é um favor, mas uma obrigação legal e moral e o primeiro passo para uma reparação histórica que o Brasil e suas instituições de ensino superior tanto devem aos seus povos originários.

“A colonização cortou nossos galhos, cortou nossos troncos, mas esqueceu de arrancar nossas raízes que hoje brotam cada vez mais fortes”,

Augusto Òpē da Silva Kaingang 

Referências

[1] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 3 nov. 2025. [2] OIT. Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes. Genebra, 1989. Disponível em: https://www.oas.org/dil/port/1989%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20sobre%20Povos%20Ind%C3%ADgenas%20e%20Tribais%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20OIT%20n%20%C2%BA%20169.pdf. Acesso em: 3 nov. 2025. [3] ONU. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (UNDRIP). 2007. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Declaracao_das_Nacoes_Unidas_sobre_os_Direitos_dos_Povos_Indigenas.pdf. Acesso em: 3 nov. 2025. [4] SOUZA LIMA, Antonio Carlos de. A Educação Superior de Indígenas no Brasil contemporâneo. Revista de História Regional, v. 17, n. 2, 2012. Disponível em: https://rhhj.anpuh.org/RHHJ/article/download/46/36/86. Acesso em: 3 nov. 2025. [5] BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Estudantes indígenas em universidades brasileiras: um estudo sobre a permanência. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 99, n. 251, 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbeped/a/dx8gDkg34fWLQw7DvCbjhyz/. Acesso em: 3 nov. 2025. [6] SILVA, Lays Gonçalves da. Povos Indígenas no contexto do ensino superior: os desafios do acesso e da permanência na UFPR. Campos – Revista de Antropologia, v. 17, n. 2, 2016. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/campos/article/view/54275/34803. Acesso em: 3 nov. 2025. [7] IBGE. Censo 2022: Brasil tem 391 etnias e 295 línguas indígenas. Agência de Notícias, 24 out. 2025. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/44848-censo-2022-brasil-tem-391-etnias-e-295-linguas-indigenas. Acesso em: 3 nov. 2025. [8] KRENAK, Ailton. As universidades, as instituições relevantes do Ocidente, só fazem perpetuar o colonialismo. Racismo Ambiental, 1 jun. 2022. Disponível em: https://racismoambiental.net.br/2022/06/01/ailton-krenak-as-universidades-as-instituicoes-relevantes-do-ocidente-so-fazem-perpetuar-o-colonialismo/. Acesso em: 3 nov. 2025.