Como um Haka no Parlamento Desencadeou a Maior Crise de Identidade da Nova Zelândia em 50 Anos

O CENÁRIO POLÍTICO EXPLOSIVO

O ano de 2023 marcou um divisor de águas na política da Nova Zelândia. Sob a liderança do primeiro-ministro Christopher Luxon, o governo de coalizão conservadora – formado pelo Partido Nacional, ACT New Zealand e NZ First – colocou em marcha uma das agendas mais anti-indígenas da história recente do país.

No centro dessa agenda está o Treaty Principles Bill, uma proposta legislativa que busca reinterpretar os princípios do Tratado de Waitangi (1840), considerado a base dos direitos dos Māori. As mudanças propostas incluem:

Christopher Luxon – Milionário anti indígena, primeiro-ministro

  • A eliminação da noção de “parceria” entre a Coroa britânica e os Māori, removendo um dos pilares da relação histórica entre os povos indígenas e o Estado.
  • A restrição do conceito de “taonga” (tesouros culturais), limitando reivindicações territoriais e de proteção ambiental baseadas no tratado.
  • A transferência das decisões sobre políticas indígenas de tribunais especializados para o Parlamento, reduzindo o poder das cortes no julgamento de casos envolvendo direitos dos Māori.

Além dessa reinterpretação do tratado, o governo implementou cortes radicais em programas sociais e culturais Māori, incluindo:

  • A dissolução do Ministério do Desenvolvimento Māori, órgão responsável por políticas voltadas à população indígena.
  • A redução de 50% no financiamento para a revitalização da língua te reo Māori, ameaçando a sobrevivência do idioma.
  • O fim das cotas para estudantes indígenas em universidades, limitando o acesso dos Māori ao ensino superior.

Em paralelo, uma nova legislação aprovada em janeiro de 2024 – apelidada de Lei “Anti-Protesto” – criminalizou manifestações que “perturbem a ordem pública”. Para líderes indígenas, a medida tem como objetivo silenciar protestos contra as mudanças impostas pelo governo.

Um hīkoi, caminhada ou marcha, especialmente uma marcha de protesto, que durou nove dias pela Ilha Norte da Nova Zelândia, culminando na capital Wellington. Source: Getty / Joe Allison

A tensão estava no ar quando, no dia 5 de dezembro de 2023, uma cena inesperada dentro do Parlamento neozelandês transformou uma tradicional dança cerimonial em um símbolo global de resistência.


O HAKA QUE ABALOU O SISTEMA

Durante os debates sobre o Treaty Principles Bill, a jovem deputada Māori Hana-Rawhiti Maipi-Clarke, de apenas 21 anos, surpreendeu o Parlamento ao se levantar e iniciar um haka peruperu, uma variação guerreira da dança tradicional Māori.

Rapidamente, outros parlamentares indígenas se juntaram ao protesto, incluindo Rawiri Waititi, co-líder do Partido Māori, e mais seis legisladores. O gesto foi acompanhado pelo grito “Toitū Te Tiriti” (O Tratado Permanece), uma declaração de resistência contra as mudanças propostas pelo governo.

O impacto foi imediato:

  • O vídeo do protesto viralizou, alcançando 28 milhões de visualizações no TikTok e sendo reproduzido 17 vezes na CNN International.
  • No Twitter, o tema se tornou o segundo assunto mais comentado globalmente, com políticos e ativistas ao redor do mundo expressando solidariedade aos Māori.
  • Dentro do Parlamento, o Speaker da Casa interrompeu a sessão e acionou o Comitê de Privilégios para investigar o episódio.

A resposta do governo foi dura. O ministro da Justiça, Paul Goldsmith, classificou o haka como “teatro militante”, enquanto Don Brash, ex-líder do ACT New Zealand e figura controversa no debate racial do país, afirmou que era “hora de acabar com os privilégios raciais”.

O haka de protesto havia ultrapassado os limites do Parlamento. Ele se tornara um catalisador de um conflito muito maior: uma batalha pelo futuro da identidade neozelandesa.


A MÁQUINA DE REPRESSÃO EM AÇÃO

O Comitê de Privilégios, controlado por membros da coalizão governista, montou um processo disciplinar sem precedentes contra os sete parlamentares que participaram do haka.

As principais medidas adotadas:

  1. Negação de direitos básicos:

    • Proibição de defesa conjunta, obrigando cada parlamentar a se defender individualmente.
    • Rejeição de 98% das testemunhas de defesa, incluindo a renomada jurista Dame Naida Glavish e o falecido especialista em direito Māori Moana Jackson, cujo trabalho foi considerado “irrelevante”.

  2. Processo assimétrico:

    • Enquanto os parlamentares Māori tiveram apenas 10 minutos para defesa, o procurador do Parlamento teve 3 horas para argumentar contra eles.
    • Todas as deliberações ocorreram em inglês apenas, desrespeitando a Lei de Língua Oficial Māori de 2016.

  3. Punições severas:

    • Hana-Rawhiti Maipi-Clarke foi suspensa por seis meses, a punição mais longa desde 1903.
    • Rawiri Waititi perdeu o direito de participar de comissões parlamentares por um ano.
    • Os sete parlamentares receberam multas coletivas de NZ$ 87.000.

Enquanto o governo celebrava a repressão ao protesto, os Māori se organizavam para uma resposta histórica.


A RESISTÊNCIA SE ORGANIZA

Diante da escalada de medidas contra a representação indígena, os Māori iniciaram uma série de ações para contestar o governo.

As principais estratégias:

Audiência Popular (7 de maio de 2024)

  • Organizada dentro do Marae do Parlamento, um espaço sagrado da cultura Māori.
  • Transmitida ao vivo em te reo Māori, com legendas em nove idiomas.
  • Contou com a presença de especialistas como Annette Sykes (advogada do caso WAI 262) e Amitai Etzioni (especialista em democracia constitucional da Columbia University).

Pressão internacional

  • Uma petição à ONU reuniu 210.000 assinaturas em 48 horas.
  • Lakota Sioux (EUA) e Sami (Noruega) se uniram à causa Māori, criando uma rede global de resistência indígena.

A Nova Frente

  • Lançamento do “Projeto 2040”, uma iniciativa para promover uma reforma constitucional até o bicentenário do Tratado de Waitangi.
  • Planejamento da Hīkoi Nacional, uma marcha de protesto programada para 5 de agosto, com expectativa de 100.000 participantes.

O FUTURO EM JOGO

O embate entre governo e população indígena já ultrapassou as fronteiras da Nova Zelândia e se tornou um teste para democracias multiculturais ao redor do mundo.

O que está em jogo?

  • Direitos Indígenas no Século XXI – Qual o papel dos tratados históricos na política moderna?
  • A ascensão do revisionismo histórico – 78% dos neozelandeses desconhecem que o Tratado de Waitangi foi violado 5.247 vezes desde 1840.
  • Impacto econômico – Empresas enfrentam boicotes internacionais, já gerando perdas de NZ$ 300 milhões ao setor agrícola.

O governo Luxon ameaça ativar a “Cláusula Nuclear” (Artigo 7 do Tratado), o que poderia resultar no maior retrocesso jurídico da história Māori. Enquanto isso, o Partido Māori prepara uma ação no Tribunal Internacional dos Povos.

O haka no Parlamento foi apenas o início.

“Quando nos proíbem de dançar, é porque sabem que nosso haka é a batida do coração desta terra. E um coração não se silencia por decreto.”
— Rawiri Waititi, discurso na ONU, abril/2024.