Aliança de Saberes no VII COPENE Sul

Nas lentes da Caipora Etnomídia, congresso de pesquisadores negros na UFSM não foi apenas registrado: foi traduzido. Reportagem analisa a aliança político-epistêmica que uniu lutas negras e indígenas no Sul do país.

Por quatro dias, entre 15 e 18 de outubro de 2025, a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul, tornou-se o epicentro de um reencontro fundamental.1 Com mais de 600 participantes, o VII Congresso de Pesquisadores Negros e Negras da Região Sul (COPENE Sul) ocupou os espaços acadêmicos não como uma conferência estéril, mas como um “território de formulação, crítica e proposição”.1

O evento foi ancorado por um tema que é, em si, um manifesto político: “Resistências ao Sul do Sul: Tecendo as Cosmospercepções para o Bem Viver”.1 A escolha semântica é uma declaração de descolonização. Ela propõe um distanciamento deliberado das epistemologias eurocêntricas, voltando-se para os saberes (as “Cosmospercepções”) e os modelos de sociedade (o “Bem Viver”) de matriz africana, indígena e quilombola como respostas viáveis e urgentes.

A cobertura de mídia oficial e a documentação visual do evento ficaram a cargo da Caipora Etnomídia. A presença de um coletivo de etnomídia indígena, idealizado e composto por comunicadores indígenas 4, documentando um dos principais fóruns de pensamento negro do país 3, é a materialização da aliança proposta no próprio tema do evento. Não foi uma contratação de serviço; foi uma tradução mútua de lutas.

Esta reportagem investiga o que foi debatido no VII COPENE Sul e o que significa “ver” esses debates através das lentes decoloniais da etnomídia. A aliança não estava apenas em pauta; estava por trás das câmeras, registrando a si mesma.

O Farol do Sul: Decodificando o VII COPENE Sul

O Evento e seu Significado Geopolítico

A realização do VII COPENE Sul na UFSM 6 foi uma realização da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros/as (ABPN), em uma parceria crucial com o Consórcio dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABs/NEABIs) da Região Sul e, notavelmente, o Neabi da própria universidade anfitriã.3

A escolha de Santa Maria, no coração do Rio Grande do Sul 1, para sediar este evento com o tema “Resistências ao Sul do Sul” é uma declaração geopolítica. O Sul do Brasil é uma região que, historicamente, projeta e exporta uma identidade de “branquitude” europeia, praticando um apagamento sistemático e violento das contribuições, histórias e da própria presença física das populações negras e indígenas. Realizar um congresso de mais de 600 pesquisadores negros 3 neste local específico é um ato de retomada territorial e epistêmica. É afirmar que o “Sul” (do Brasil) também é negro, também é indígena, e é um centro vibrante de produção de conhecimento de resistência.

O formato do COPENE Sul é, em si, uma prática do “Bem Viver” que propõe em seu tema. Um congresso ocidental tradicional segrega o “intelecto” (os painéis) da “celebração” (o coquetel). A estrutura do COPENE Sul, por outro lado, fundiu os dois. Ao incluir atividades como o “Ateliê Griot”, o “Jantar Baile” na Sede da ASSUFSM 2 e apresentações culturais como a do coletivo Afoxé às Yabás, que difunde o “Candomblé de rua” 3, o evento fez uma afirmação metodológica. Ele declarou que a cultura, a espiritualidade, a dança e a celebração não são apêndices do conhecimento, mas formas centrais de produção de conhecimento, alinhando-se perfeitamente às “Cosmospercepções” do tema.

Destaques Epistêmicos: Do Afrocientista a Exu

Dentro dessa estrutura, alguns debates chave definiram o tom intelectual e político do congresso. O Painel Afrocientista foi um espaço dedicado a discutir o projeto homônimo, uma iniciativa da ABPN com parceiros para promover a iniciação científica de estudantes negros do ensino médio na rede pública.3 O painel destacou a importância de fundamentar essa iniciação em “epistemologias negra e indígena”, demonstrando a preocupação do congresso não apenas em debater, mas em formar a próxima geração de pesquisadores decoloniais.3

Da mesma forma, o Nzila da Educação Básica debateu os “Caminhos Ancestrais” e a aplicação prática das cosmopercepções africanas e indígenas na práxis da Educação Básica, desde a Educação Infantil até o Ensino Médio.3

O ponto culminante dessa jornada epistêmica foi a Conferência de Encerramento: “Exu, O Comunicador: Tecendo Saberes do Sul ao Sul”.3 Encerrar um congresso acadêmico com uma conferência centrada em Exu é um ato radical de descolonização epistêmica. Exu, o Orixá da comunicação, dos caminhos, da troca e da ordem dinâmica, é uma das figuras mais demonizadas pelo racismo religioso no Brasil. Posicioná-lo como o “Comunicador” 9 que “tece saberes” foi uma metáfora perfeita para todo o congresso: um evento que desafiou estereótipos, celebrou a comunicação (incluindo a da Caipora Etnomídia) e reafirmou a cosmopercepção africana como uma filosofia complexa, válida e essencial para a academia.3

A Intersecção em Pauta: Onde as Lutas Negra e Indígena se Encontraram

Se o tema do evento propunha “tecer” resistências, foram nos debates sobre política e saúde que essa costura afro-indígena se tornou mais visível e robusta.

O VII COPENE Sul contou com o apoio e a participação ativa do Ministério da Igualdade Racial (MIR), representado por sua Secretaria de Gestão do Sistema Nacional de Promoção da IgualGUALDADE Racial (Senapir).1

A participação do MIR não foi meramente cerimonial; foi estratégica. A diretora de Articulação Interfederativa da Senapir, Isadora Bispo, esteve presente e sua principal participação se deu na mesa temática “Mulheres Negras e Indígenas ao Sul do Sul”.1

O fato da principal mesa de articulação política, com a representante direta do governo federal, ser justamente aquela focada na intersecção “Mulheres Negras e Indígenas” é profundamente significativo. Isso posiciona as mulheres negras e indígenas não como um “recorte” ou um debate setorial, mas como o centro da articulação política para a construção de um “Brasil antirracista”.1

Isadora Bispo destacou o COPENE como um “território de formulação” e o SINAPIR (Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial) como a “estrutura de implementação”.1 O MIR disponibilizou um espaço de interação sobre o SINAPIR durante o evento, buscando ativamente “democratizar as informações” e “fortalecer os laços entre a produção acadêmica e a gestão pública”.1 O congresso funcionou, assim, como um lobby intelectual, um esforço consciente para “transformar saber em ação e teoria em política pública”.1 Como ressaltou Bispo, “o pensamento negro é também ação, é política pública e é projeto de país”.1

O Racismo como Processo de Adoecimento: O Painel de Saúde

A materialização mais clara da aliança afro-indígena ocorreu no painel “Atenção à saúde e racismo: invisibilidade e resistências”, realizado em 15 de outubro.7 Este painel funcionou como um microcosmo da tese inteira do congresso, unindo especialistas da saúde negra e da saúde indígena em uma única e potente mesa de debate.

A pauta negra, articulada por figuras como a mediadora Leila Coutinho (NEABI/ANEN), Célia Mariana Barbosa (HCPA) e Alva Helena de Almeida (idealizadora da ANEN), focou no racismo como um “processo de adoecimento”.7 O debate centrou-se na urgência de “mexer na base, na formação dos profissionais de saúde”, incluindo o letramento racial, e denunciou a baixa implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN).7

Ao lado delas, a enfermeira Clarisse Ga Fortes, da etnia Kaingang e atuante na Secretária Especial de Atenção à Saúde Indígena (SESAI), trouxe a perspectiva indígena.7 Fortes denunciou as “profundas desigualdades” na saúde indígena, citando altas taxas de mortalidade infantil, subnotificação de doenças e desassistência em áreas remotas. Crucialmente, ela apontou o “racismo estrutural e institucional” como a causa, manifestando-se como “atendimento precário, falta de respeito aos saberes tradicionais e ausência de representatividade indígena nos espaços de decisão”.7

Este painel foi o “tecer” (do tema do congresso) em ação. Ele não segregou as lutas. Ele as colocou em diálogo direto, demonstrando que, embora as políticas específicas sejam diferentes (PNSIPN para a população negra, PNASPI para a indígena), o inimigo sistêmico é o mesmo: o racismo estrutural que opera através da “invisibilidade” (o título do painel), da subnotificação e do desrespeito pelos saberes não-brancos. A mesa foi um espaço de “reflexão, denúncia e valorização das práticas de resistência” 7 de ambos os povos.

“Autonomia, Verdade e Ancestralidade” na Caipora Etnomídia

O Conceito de Etnomídia e a Descolonização da Narrativa

Para entender como a Caipora fotografou o COPENE Sul, é preciso entender o conceito de “etnomídia”. Diferente do jornalismo tradicional, que muitas vezes opera sob um véu de objetividade ocidental, a etnomídia (ou etnocomunicação) é uma ferramenta explícita para a “comunicação dos povos originários”.11

Seu objetivo central é a “descolonização dos meios de comunicação”.11 Ela surge como uma resposta direta à “invisibilidade indígena na grande mídia” 12 e como forma de quebrar os estereótipos.11

O método da etnomídia, como praticado por iniciativas pioneiras como a Rádio Yandê 11 e pela própria Caipora, não busca uma imparcialidade distante. Pelo contrário, busca uma comunicação ampla que envolve “diferentes formas de pensar e de relatar as coisas”, baseada em “filosofias nativas”.11 O comunicador nativo não é um observador neutro; ele “compartilha saberes e fortalece suas identidades” 11 ao mesmo tempo que informa. A comunicação é, portanto, parte da luta.

A Conexão Institucional: O NEABI como Ponte Afro-Indígena

A colaboração entre o VII COPENE Sul e a Caipora Etnomídia não foi um acaso. Ela foi estruturada e possibilitada por uma entidade-chave: o NEABI (Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas) da UFSM.3

Este núcleo desempenhou uma dupla função vital que permitiu essa aliança:

  1. O NEABI/UFSM foi um dos realizadores centrais e anfitriões do VII COPENE Sul.3
  2. O Projeto Revista Caipora — Etnomídia Indígena está vinculado ao NEABI/UFSM.4

O NEABI funcionou, portanto, como a ponte institucional e política que conectou a luta negra (COPENE) e a luta indígena (Caipora). O “I” de “Indígena” na sigla NEABI não foi um apêndice do “Afro-Brasileiro”; foi um pilar ativo e propositivo. A decisão de ter um coletivo de etnomídia indígena vinculado ao núcleo cobrindo o maior evento de pesquisadores negros do Sul, também organizado pelo núcleo, é a manifestação prática da própria razão de ser de um NEABI. É a solidariedade antirracista saindo da teoria e se tornando práxis institucional.

Mais do que palestrantes em púlpitos, as lentes da Caipora buscaram capturar a presença dos mais de 600 corpos negros e indígenas 3 ocupando um território historicamente branco como a UFSM. Elas buscaram os abraços do “reencontro de trajetórias” 1, os rituais (como o Afoxé às Yabás 3) e a celebração. Ser uma Contranarrativa: A cobertura não foi uma observadora externa. Ela foi uma “cobertura colaborativa de mobilização”.4 Ela é parte da luta. O olhar indígena sobre o pensamento negro é, em si, um ato de “curar a terra” 10 e de “tecer” 1 a aliança proposta.

Tecendo a Imagem do Futuro

O VII COPENE Sul não foi apenas um congresso. Foi uma ocupação político-epistêmica do Sul do Brasil, um espaço para tecer alianças estratégicas (com o Ministério da Igualdade Racial) e uma solidariedade fundamental (entre as lutas negras e indígenas, como visto no painel de saúde).

A Caipora Etnomídia, por sua vez, não foi apenas uma “cobertura de imprensa”. Ao aplicar sua missão de etnomídia 4, o coletivo indígena garantiu que a memória deste evento fosse preservada não por um olhar externo e supostamente neutro, mas por um “olhar da terra”.10

As fotos e vídeos que emergem da Caipora Etnomídia não são, portanto, meras “fotos da cobertura”. Elas são a primeira imagem de um futuro decolonial, onde Exu é o comunicador 3 e a comunicação indígena é a ferramenta para a cura. A aliança de “Resistências ao Sul do Sul” 1 foi teorizada, debatida, filmada, fotografada e, o mais importante, foi vivida.

Em breve a Caipora Etnomídia irá lançar também uma produção audiovisual sobre o VII Copene Sul.

Confira todas as fotos da cobertura completa da Caipora no link do drive: http://Link das fotos

Referências citadas

  1. MIR participa do VII Congresso de Pesquisadores Negros e Negras …, acessado em novembro 11, 2025, https://www.gov.br/igualdaderacial/pt-br/assuntos/copy2_of_noticias/mir-participa-do-vii-congresso-de-pesquisadores-negros-e-negras-da-regiao-sul
  2. VII COPENE SUL acontece entre 15 e 18 de outubro – ASSUFSM, acessado em novembro 11, 2025, https://assufsm.com.br/vii-copene-sul-acontece-entre-15-e-18-de-outubro/
  3. 7º COPENE Sul na UFSM: evento reuniu mais de 600 participantes …, acessado em novembro 11, 2025, https://www.ufsm.br/pro-reitorias/pre/observatorio-de-direitos-humanos/2025/10/21/7o-copene-sul-ufsm
  4. edital nº 049/2025 – seleção de membros bolsistas e não bolsistas para o projeto “revista caipora — etnomídia indígena” – UFSM, acessado em novembro 11, 2025, https://www.ufsm.br/app/uploads/sites/414/2025/04/EDITAL-No-049_2025-%E2%80%93-SELECAO-DE-MEMBROS-BOLSISTAS-E-NAO-BOLSISTAS-PARA-O-PROJETO-REVISTA-CAIPORA-%E2%80%94-ETNOMIDIA-INDIGENA-3.pdf
  5. Caipora Etnomidia está fazendo Audiovisual Indígena na APOIA.se!, acessado em novembro 11, 2025, https://apoia.se/caiporaetnomidia
  6. UFSM sedia VII Congresso de Pesquisadores Negros e Negras da Região Sul, acessado em novembro 11, 2025, https://www.ufsm.br/2025/10/03/ufsm-sedia-vii-congresso-de-pesquisadores-negros-e-negras-da-regiao-sul
  7. Realizado na UFSM, Copene Sul 2025 terá painel sobre saúde das …, acessado em novembro 11, 2025, https://diariosm.com.br/noticias/saude/realizado-na-ufsm-copene-sul-2025-tera-painel-sobre-saude-das-populacoes-negra-e-indigena.15435913
  8. Congresso de Pesquisadores Negros e Negras da Região Sul …, acessado em novembro 11, 2025, https://almapreta.com.br/sessao/cotidiano/congresso-de-pesquisadores-negros-e-negras-da-regiao-sul-promove-trajetorias-negras-na-universidade/
  9. Santa Maria pulsa com o 7º Congresso de Pesquisadores Negros e Negras da Região Sul; evento segue até sábado, acessado em novembro 11, 2025, https://diariosm.com.br/noticias/geral/santa-maria-pulsa-com-o-7o-congresso-de-pesquisadores-negros-e-negras-da-regiao-sul-evento-segue-ate-sabado.15436015
  10. Revista Caipora, acessado em novembro 11, 2025, https://caipora.eco.br/
  11. Etnomídia, uma ferramenta para a comunicação dos povos …, acessado em novembro 11, 2025, https://www.brasildefato.com.br/2016/08/11/etnomidia-por-uma-comunicacao-dos-povos-originarios/
  12. Invisibilidade indígena na grande mídia: o que fizemos com o nosso povo? – Rádio Yandê, acessado em novembro 11, 2025, https://radioyande.com/invisibilidade-indigena-na-grande-midia-o-que-fizemos-com-o-nosso-povo/
  13. (PDF) Etnomídia: contra-narrativas indígenas nas redes digitais – ResearchGate, acessado em novembro 11, 2025, https://www.researchgate.net/publication/371582586_Etnomidia_contra-narrativas_indigenas_nas_redes_digitais
  14. VII Congresso de Pesquisadores Negros e Negras da Região Sul (COPENE Sul) está chegando com uma programação imperdível – UFSM, acessado em novembro 11, 2025, https://www.ufsm.br/pro-reitorias/pre/observatorio-de-direitos-humanos/2025/10/09/vii-congresso-de-pesquisadores-negros-e-negras-da-regiao-sul-copene-sul-esta-chegando-com-uma-programacao-repleta-de-atracoes-imperdiveis
  15. VII COPENE Sul inicia amanhã na UFSM: confira a programação, acessado em novembro 11, 2025, https://www.ufsm.br/pro-reitorias/pre/observatorio-de-direitos-humanos/2025/10/14/vii-copene-programacao
  16. Abertura oficial do VII COPENE Sul e o fortalecimento do Bem Viver – UFSM, acessado em novembro 11, 2025, https://www.ufsm.br/pro-reitorias/pre/observatorio-de-direitos-humanos/2025/10/15/abertura-copene
  17. 049/2025 – Edital nº 049/2025 – Seleção de bolsistas e não bolsistas para o projeto “Revista Caipora — Etnomídia Indígena” – Observatório de Direitos Humanos – UFSM, acessado em novembro 11, 2025, https://www.ufsm.br/pro-reitorias/pre/observatorio-de-direitos-humanos/editais/049-2025
  18. Revista Caipora, acessado em novembro 11, 2025, https://revista.caipora.org/forums/users/xainapitaguary/
  19. VII Congresso de Pesquisadores Negros e Negras da Região Sul – COPENE/Sul 2025, acessado em novembro 11, 2025, https://www.ufsm.br/pro-reitorias/pre/2025/10/09/vii-congresso-de-pesquisadores-negros-e-negras-da-regiao-sul-copene-sul-2025