CONAFER: A ONG do agronegócio que opera dentro dos territórios indígenas e frauda aposentados com aval do Estado
Uma investigação da Polícia Federal revelou um esquema bilionário de descontos indevidos em aposentadorias do INSS, comandado por um consórcio de entidades conveniadas com o governo federal. No centro da operação Sem Desconto está a CONAFER (Confederação Nacional dos Agricultores Familiares e Empreendedores Familiares do Brasil), uma ONG que se apresenta como representante da agricultura familiar e de indígenas, mas que é liderada por um pecuarista com negócios em melhoramento genético de gado, mineração e até uma holding internacional.
Sob a fachada de apoio a comunidades vulneráveis, a CONAFER construiu um império econômico e político, sustentado por parcerias com ministérios, apoio de parlamentares do centrão e acesso direto a territórios indígenas em todo o país. Mas o que parece ser uma organização de assistência social esconde uma engrenagem sofisticada de coação financeira, cooptação de lideranças e falsificação de documentos — tudo financiado pelo dinheiro de aposentados e pensionistas.
Infiltração nos territórios e fraudes em série
O que se iniciou como um programa de aproximação entre o INSS e organizações da sociedade civil — supostamente com o objetivo de ampliar o acesso de populações rurais e indígenas aos benefícios previdenciários — se converteu, na prática, em um esquema de infiltração silenciosa e massiva nas comunidades mais vulneráveis do país.
Desde 2016, a CONAFER passou a estabelecer acordos de cooperação técnica com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), autorizando-a a operar como intermediadora de serviços previdenciários. Essa relação se fortaleceu de forma preocupante em 2022, quando a Instrução Normativa nº 135, assinada pela então presidente do INSS, Josiane Soares de Oliveira, durante o governo Jair Bolsonaro, flexibilizou os critérios de convênio entre entidades privadas e o Instituto. A normativa ampliou o leque de autorizações para descontos consignados em aposentadorias — incluindo associações como a CONAFER — com base apenas na “autodeclaração” de anuência do beneficiário.
Na prática, isso abriu espaço para um sistema de cobrança fraudulenta que passou a operar sem o consentimento efetivo dos aposentados e pensionistas. Assinaturas eram coletadas sem explicações claras, documentos eram preenchidos em branco e, em muitos casos, falsificados. Em aldeias indígenas isoladas, o “atendimento previdenciário” promovido por agentes da CONAFER era vendido como um mutirão de benefícios, quando, na verdade, estava acompanhado de cadastros apressados, sem tradutores ou orientações mínimas, e sem explicitação dos compromissos financeiros que estavam sendo assumidos.
A própria Controladoria-Geral da União (CGU) constatou que a maioria dos beneficiários atingidos sequer tinha conhecimento de que fazia parte da entidade. Muitos descobriram os descontos apenas ao ver os extratos bancários, meses depois, quando perceberam valores mensais de R$ 20 a R$ 60 sendo abatidos sob rubricas genéricas, como “serviço odontológico”, “assistência jurídica” ou “filiação associativa”. Em territórios onde o português sequer é o idioma principal, não havia qualquer esforço para garantir o direito à informação.
De acordo com o relatório da CGU e do Tribunal de Contas da União (TCU), a CONAFER arrecadou mais de R$ 202 milhões em 2023 por meio desses descontos — um crescimento vertiginoso que acompanhou o salto de associados, de 231 mil em 2021 para 641 mil em 2023. Esses dados indicam que, longe de promover a cidadania previdenciária, a organização passou a operar como uma usina de faturamento a partir de aposentadorias indígenas e rurais.
O estrago é colossal. Segundo os órgãos de controle, mais de 6 milhões de brasileiros foram afetados pelos descontos indevidos — o que gerou um prejuízo estimado em R$ 6,3 bilhões ao longo do período investigado. Entre as 11 organizações envolvidas no esquema, a CONAFER figura como a mais citada em reclamações formais: foram 3.726 denúncias apenas em um ano, sendo quase 70% por cobranças sem autorização, segundo levantamento do próprio INSS.
Em um país onde o acesso a serviços previdenciários já é dificultado por distâncias geográficas, racismo institucional e barreiras linguísticas, o que era para ser um instrumento de apoio se transformou em mais uma forma de exploração. E pior: operando com o aval do Estado.
O império agroindigenista de Carlos Lopes: da mineração ao lobby nas aldeias
No centro do esquema que hoje envolve fraudes previdenciárias bilionárias, manipulação da identidade indígena e uma ocupação estratégica de territórios tradicionais, está Carlos Roberto Ferreira Lopes — presidente da CONAFER, pecuarista, empresário do agronegócio e figura cada vez mais presente nos bastidores do poder em Brasília. Apresentado publicamente como “líder indígena” e defensor da agricultura familiar, Lopes é, na verdade, proprietário de uma empresa de melhoramento genético de gado (Concepto Vet), fundador de uma holding agropecuária nos Estados Unidos (Farmlands), e patriarca de uma família que administra ainda empreendimentos no ramo de mineração e agronegócio em Minas Gerais (Lagoa Alta).
A trajetória empresarial de Lopes se entrelaça, de forma suspeita, com a ascensão meteórica da CONAFER, que deixou de ser uma obscura ONG do Distrito Federal para se tornar uma das entidades mais influentes no interior dos ministérios da Agricultura, Comunicações e até da Previdência. Em apenas dois anos, a organização saltou de 200 mil para mais de 600 mil “associados”, estendendo sua presença a aldeias, reservas extrativistas, assentamentos e quilombos — sempre com o mesmo método: entregas pontuais de cestas básicas, patrocínio de eventos locais, premiações simbólicas a lideranças e repasse de caminhonetes locadas ou salários mensais a caciques e presidentes de associações.
Em territórios Pataxó, Kaingang, Tikuna e Guarani, a Caipora ouviu relatos semelhantes: líderes comunitários, diante do abandono do Estado e da escassez de políticas públicas efetivas, aceitaram o auxílio da CONAFER — sem saber que, em contrapartida, estavam “associando” seus povos a uma estrutura de poder com fins privados. Em muitos casos, os acordos vinham acompanhados de condições não explícitas: gravar vídeos em apoio à entidade, assinar documentos genéricos, divulgar as ações nas redes sociais da CONAFER ou apoiar politicamente seus representantes.
Enquanto isso, a imagem de Carlos Lopes como “defensor dos povos originários” se consolidava em Brasília. Em 2023, foi convocado como “representante indígena” para audiências públicas no Senado Federal, ocupou espaços na FUNAI e no Ministério das Comunicações, e foi homenageado com títulos de cidadania indígena em assembleias legislativas estaduais. A articulação política não se dava apenas com partidos tradicionais do campo progressista. Seu principal articulador político é o senador Chico Rodrigues (PSB-RR) — ex-vice-líder do governo Bolsonaro e flagrado com dinheiro na cueca pela Polícia Federal, além de investigado por envolvimento com garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami.
A CONAFER, portanto, se consolida como uma entidade camaleônica: discursa em defesa da demarcação de terras e contra o marco temporal, mas se estrutura com base em práticas neocoloniais, extrativistas e clientelistas. É uma entidade que se diz indígena, mas é presidida por um pecuarista milionário; que afirma defender a agricultura familiar, mas mantém vínculos diretos com o agronegócio e o setor mineral; que prega a autonomia dos povos, mas os coage a se associarem em troca de benefícios básicos.
E enquanto isso, milhares de indígenas descobrem, tardiamente, que seus nomes estão vinculados a essa engrenagem — com dinheiro sendo extraído diretamente de seus benefícios sociais, de forma ilegal e silenciosa.
Desinformação institucional e alianças paralelas: a fabricação de representatividade indígena sob medida
No rastro da expansão da CONAFER pelos territórios indígenas, um fenômeno silencioso e estratégico passou a ganhar força: a formação de uma rede paralela de representações indígenas, construída não a partir de processos de autodeterminação dos povos, mas sob modelos externos de institucionalização, alicerçados em interesses privados e orientações políticas alinhadas a figuras como Carlos Lopes.
Essa operação se desenrola em duas frentes principais. De um lado, a produção de conteúdos massivos e descontextualizados para redes sociais e canais institucionais da CONAFER, onde indígenas são filmados agradecendo a organização por ações pontuais — como cestas básicas, torneios esportivos, ou apoio jurídico. Esses vídeos, compartilhados fora de contexto, são usados como prova social de apoio comunitário. Mas raramente os envolvidos sabem que seus nomes estão sendo utilizados em materiais que legitimam filiações forçadas ou autorizações de desconto em folha de pagamento via INSS.
De outro lado, há um movimento mais estrutural e político: a tentativa de minar a articulação indígena autêntica representada por entidades como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Em fevereiro de 2024, por exemplo, Maria Cícera Salustriano Caetano, indígena da etnia Xukuru do Ororubá e ex-funcionária da CONAFER, lançou em Brasília a chamada “Embaixada dos Povos Indígenas” — uma organização apresentada como nova liderança indígena, mas sem qualquer relação com as instâncias legítimas de representação nacional.
A APIB, por sua vez, divulgou nota pública denunciando a tentativa de deslegitimação e a apropriação indevida da identidade indígena, afirmando não ter qualquer vínculo com a nova entidade. Apesar disso, a Embaixada passou a ser apresentada pela CONAFER como “parceira legítima” e “institucionalmente alinhada”, sendo utilizada como interface política para encontros com parlamentares, ministros e agências internacionais.
Esse modelo de cooptação de lideranças não é novo — mas o que chama atenção no caso da CONAFER é a sofisticação do aparato de comunicação e articulação institucional, que opera de forma multiescalar: do WhatsApp de lideranças locais às salas da Esplanada dos Ministérios. A entidade atua como se fosse um organismo de representação oficial, sem nunca ter sido eleita, validada ou reconhecida pelas instâncias tradicionais do movimento indígena. E mais: usurpa o direito à autodeterminação dos povos ao criar uma rede de “representantes” que respondem diretamente a uma estrutura centralizada e privada, com sede em Brasília, dirigida por um pecuarista.
Essa estratégia de desinformação institucionalizada foi essencial para que a CONAFER conseguisse manter, por anos, convênios com órgãos como o INSS e o Ministério das Comunicações, mesmo diante de milhares de denúncias, irregularidades fiscais e suspeitas de falsificação documental. Ao capturar a linguagem dos direitos indígenas e envolvê-la em uma embalagem de empreendedorismo rural, a organização subverte o discurso da soberania dos povos originários, colocando-o a serviço de interesses corporativos — um novo colonialismo travestido de inclusão.
Essa teia de alianças paralelas, fabricadas por conveniência, mina a força das estruturas de base dos povos originários, divide comunidades, e fragiliza a luta coletiva. E tudo isso com a chancela implícita (ou omissa) de setores do Estado, que, por inércia ou conveniência, continuam a permitir que a CONAFER se apresente como voz legítima de comunidades que sequer a reconhecem.
Jaguar e o mercado da ancestralidade: a apropriação comercial da estética indígena como fachada de legitimidade
Entre os corredores polidos do Aeroporto Internacional de Brasília, um novo empreendimento chama atenção dos viajantes: a loja Jaguar – Produtos Artesanais Indígenas, inaugurada em 2024 sob a marca da CONAFER. À primeira vista, o espaço parece uma celebração da arte originária — cocares, colares, peças de cerâmica e vestuário tradicional preenchem vitrines que evocam a floresta. Mas por trás dessa imagem cuidadosamente construída está uma engrenagem que transforma identidade em mercadoria, espiritualidade em marketing e cultura em vitrine.
A loja Jaguar é mais do que um ponto de venda: é a materialização de um modelo de negócio baseado na captura da estética indígena, muitas vezes desvinculada de suas origens comunitárias e do devido retorno para quem a produz. Oficialmente, a Jaguar se apresenta como uma “iniciativa de valorização da produção indígena”, mas em sua gestão centralizada, sob controle da mesma estrutura empresarial de Carlos Lopes, o que se verifica é a reedição de uma lógica extrativista — agora simbólica — que transfere capital cultural dos povos indígenas para os cofres de um pecuarista com ambições internacionais.
Segundo a CONAFER, a loja é “administrada em parceria com indígenas de diversas etnias”. No entanto, não há clareza sobre quais povos realmente participam da gestão, como são definidos os critérios de curadoria das peças, tampouco quais acordos garantem a remuneração justa de artesãos e coletivos. Mais grave ainda é o uso do espaço como plataforma de construção de imagem pública para o próprio presidente da CONAFER, que vem utilizando a loja como vitrine institucional para afirmar sua falsa identidade indígena em eventos diplomáticos e negociações com ministérios.
A narrativa construída ao redor da Jaguar — “ancestralidade, arte e empreendedorismo” — se encaixa perfeitamente nos discursos que capturam o imaginário urbano e liberal sobre povos originários. Mas, ao substituir os processos comunitários por um circuito empresarial privado, a CONAFER cria um simulacro de representatividade, transformando o artesanato indígena em commodity de luxo para consumo cosmético — sem qualquer relação com as lutas reais dos territórios, com os rituais que dão sentido a essas criações ou com os processos coletivos que as originam.
Além de Brasília, a expansão para aeroportos em Lisboa e Madrid está nos planos da organização. A proposta, apresentada como “internacionalização da cultura indígena brasileira”, esconde um dado central: a ausência de qualquer protagonismo efetivo das entidades indígenas de base, como a APIB ou organizações regionais autônomas, que sequer são consultadas sobre o uso de símbolos, artefatos e nomes associados às suas tradições.
Esse modelo de internacionalização cultural, sem consulta livre, prévia e informada, configura violação direta da Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário, e reitera uma prática histórica: transformar o indígena em espetáculo, enquanto sua terra é explorada, sua identidade é deturpada e seus direitos são silenciados.
Na Jaguar, o cocar é vendido como souvenir. O nome dos povos vira marca. E o protagonismo indígena é recortado, editado e comercializado em nome da “inclusão produtiva”.
Mas em que medida isso representa, de fato, os povos indígenas? Quem decide o que é “autêntico”? Quem lucra com a ancestralidade alheia?
Essas são perguntas que a Caipora propõe lançar não apenas à CONAFER, mas a toda estrutura institucional que permite que esse tipo de prática se estabeleça — inclusive os próprios espaços públicos que abrem suas portas a um projeto que não representa os povos, mas sim o capital que se mascara com suas cores e penas.
Alianças perigosas: CONAFER, garimpo ilegal e o pacto com o agronegócio institucional
Apesar do discurso público de defesa dos direitos indígenas e de oposição ao marco temporal, a CONAFER constrói nos bastidores alianças que contradizem frontalmente os interesses dos povos originários. O nome mais emblemático dessa ambiguidade política é o do senador Chico Rodrigues (PSB-RR) — figura central nas articulações da confederação em Brasília e um dos mais notórios defensores do garimpo em terras indígenas no Congresso Nacional.
Chico Rodrigues ficou nacionalmente conhecido em 2020, quando foi flagrado com dinheiro escondido na cueca durante uma operação da Polícia Federal que investigava desvios de verbas da saúde em Roraima. O escândalo não encerrou sua carreira: pelo contrário, ele voltou ao Senado e se rearticulou politicamente com apoio de setores conservadores e ruralistas — o mesmo ambiente no qual Carlos Lopes, presidente da CONAFER, vem operando suas conexões estratégicas.
A relação entre os dois foi selada em 2023, com a criação da Frente Parlamentar Mista pelo Empreendedorismo Rural, lançada com pompa no Congresso Nacional. Lopes apareceu como convidado de honra, falando em nome dos “pequenos agricultores indígenas” e apresentando seu programa de melhoramento genético de gado como solução de desenvolvimento para comunidades originárias. O evento foi patrocinado por parlamentares com histórico de defesa da mineração e da pecuária extensiva em territórios indígenas.
Essa aproximação escancara a instrumentalização do discurso da inclusão indígena para legitimar agendas do agronegócio e do extrativismo. Carlos Lopes e Chico Rodrigues compartilham uma visão “empreendedora” dos territórios indígenas, que transforma a floresta em ativo econômico e a cultura em marca de negócio. Para isso, utilizam uma retórica de “autonomia produtiva”, que ignora os protocolos de consulta prévia e os princípios da autodeterminação dos povos.
Em 2018, um avião pertencente a Chico Rodrigues foi flagrado circulando em áreas de garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami, conforme revelado por reportagens e dossiês de organizações socioambientais. O senador nunca explicou satisfatoriamente o episódio. Mesmo assim, ele continuou articulando políticas de “uso sustentável” dos territórios indígenas, alinhando-se a pautas da bancada ruralista e de mineradoras transnacionais.
Carlos Lopes, por sua vez, vem utilizando a CONAFER como porta de entrada para negociações com o Executivo, obtendo reuniões com ministérios como Agricultura, Comunicações e até com a Funai — onde tem feito reivindicações como se fosse representante legítimo dos povos indígenas, mesmo sem respaldo da APIB ou de organizações regionais reconhecidas. Nessas ocasiões, aparece trajando cocares e adornos tradicionais, usando a estética como argumento de autoridade.
A parceria entre CONAFER e Chico Rodrigues não é casual: ela materializa um projeto político-econômico que visa transformar os territórios indígenas em “zonas de produção”, mediadas por ONGs que não representam os povos, mas que servem de fachada legal para o avanço do capital rural e extrativista.
Essa lógica é ainda mais alarmante diante do contexto de crise humanitária nos territórios Yanomami, onde o garimpo ilegal destrói rios, espalha mercúrio, gera fome e epidemias. Ainda assim, a CONAFER insiste em apresentar soluções baseadas em “empreendedorismo” e “modernização”, ignorando a resistência histórica dos povos indígenas a esses modelos.
É nesse cenário que o discurso institucional da CONAFER perde qualquer resquício de legitimidade, pois seus vínculos com políticos anti-indígenas e sua atuação em territórios sob intensa pressão minerária revelam que o compromisso não é com os direitos coletivos, mas com a manutenção de um sistema que transforma territórios sagrados em negócios de ocasião.
A Caipora alerta: não se trata apenas de denúncia, mas de defesa ativa dos territórios e de seus verdadeiros representantes. Nenhuma ONG — por mais que se fantasie de indígena — pode falar pelos povos sem passar pelas suas assembleias, suas lideranças legítimas e seus protocolos comunitários.
A máscara do cocar: a fabricação de uma identidade indígena para a ocupação institucional
Em meio ao avanço da CONAFER nos territórios indígenas e às denúncias de fraudes e alianças perigosas com políticos do centrão, uma figura se destaca como o epicentro desse projeto de captura institucional: Carlos Roberto Ferreira Lopes, pecuarista, empresário do ramo genético bovino e fundador de uma holding nos Estados Unidos. Mas para além dos negócios, Lopes construiu para si uma narrativa de pertencimento indígena que não resiste à mínima verificação pública.
Apresentado em eventos oficiais como “liderança indígena reconhecida do Xingu, dos Yanomami e de Pindorama”, Lopes tem adotado indumentária cerimonial indígena, como cocares e colares, nas aparições públicas da CONAFER. Em algumas ocasiões, posou em frente à sede do governo federal ou da Funai em Brasília como representante dos povos indígenas. No entanto, não há qualquer reconhecimento institucional ou comunitário sobre sua suposta origem étnica — nem nos registros da APIB, nem em organizações regionais ou bases territoriais que compõem o movimento indígena nacional.
Trata-se, portanto, de uma identidade performática, construída com fins políticos e mercadológicos, que se vale da estética indígena para ocupar espaços de deliberação, acessar políticas públicas e disputar legitimidade com organizações tradicionais. O caso mais simbólico desse processo ocorreu em dezembro de 2024, quando Lopes foi apresentado como liderança indígena durante uma audiência no Senado Federal para debater a concessão da BR-163 — rodovia que corta territórios sagrados e é eixo logístico de expansão do agronegócio na Amazônia.
A apropriação da estética e da representação política indígena por figuras externas é uma das formas mais insidiosas de colonialismo contemporâneo. Lopes não apenas finge ser indígena: ele molda uma estrutura paralela de representação, deslegitimando os fóruns tradicionais, como a APIB, e criando uma rede de articulação própria — à qual pertencem a chamada “Embaixada dos Povos Indígenas” e diversos escritórios regionais da CONAFER infiltrados em territórios indígenas.
A Embaixada dos Povos Indígenas, lançada em 2024 por uma ex-funcionária da CONAFER, com apoio político de figuras próximas a Lopes, foi apresentada como alternativa à APIB, com um discurso supostamente mais “conciliador” e “empreendedor”. Na prática, a nova entidade se colocou como ponte entre setores conservadores e lideranças cooptadas, muitas vezes remuneradas com cargos simbólicos, transporte e cestas básicas.
Trata-se de uma estratégia típica do paralelismo institucional: esvazia-se a potência das organizações de base por meio da criação de estruturas “representativas” controladas por interesses externos. Isso enfraquece a luta coletiva e fragmenta o campo de resistência indígena, colocando uma organização com fachada nativa a serviço de agendas coloniais.
A APIB respondeu à criação da Embaixada com uma nota pública, afirmando que não reconhece qualquer vínculo com a entidade nem com seus propósitos ocultos. O próprio movimento indígena, em diferentes regiões do país, tem denunciado a infiltração da CONAFER como um projeto de cooptação e silenciamento, disfarçado de inclusão e assistência.
O uso simbólico da identidade indígena por quem nunca foi reconhecido por sua comunidade, sem laços reais, sem participação em assembleias e sem escuta aos protocolos coletivos, é mais do que apropriação cultural: é fraude política com implicações diretas na formulação de políticas públicas, na disputa por recursos e na representação nacional e internacional dos povos indígenas.
Ao ocupar espaços com base em uma identidade fabricada, Carlos Lopes transforma o cocar em logomarca, a reza em produto e o território em vitrine. Seu projeto converte símbolos ancestrais em estratégia de marketing, esvaziando o sentido sagrado das culturas originárias e colocando em risco a integridade das representações legítimas dos povos.
A denúncia que a Caipora levanta não é apenas sobre a fraude financeira: é sobre a fraude simbólica e política que ameaça o coração do movimento indígena brasileiro. Não se trata de uma disputa de organizações — trata-se da defesa do direito inegociável de cada povo falar por si, sem intermediários fantasmas, sem lideranças inventadas, sem ONGs que vendem identidade em troca de convênios e influência.
Economia da farsa: como a CONAFER transformou a identidade indígena em ativo econômico e instrumento de poder
A CONAFER não é apenas uma organização com atuação controversa em comunidades tradicionais. Trata-se de uma estrutura empresarial e política em expansão, que vem utilizando recursos públicos, alianças privadas e o prestígio simbólico da identidade indígena para consolidar um império multissetorial, cuja face pública é associativa, mas cuja engrenagem é mercado, lucro e influência institucional.
Segundo relatório do Tribunal de Contas da União, apenas em 2023 a CONAFER recebeu R$ 202,3 milhões em repasses derivados de descontos previdenciários realizados em nome de associados. Esse montante, que a entidade tenta minimizar como “11% de sua receita”, revela apenas a parte mais visível de uma engrenagem que opera simultaneamente com verbas públicas, convênios federais, isenções tributárias, patrocínios empresariais e exploração comercial da estética indígena.
Entre os empreendimentos sob controle direto ou indireto de Carlos Lopes estão:
- A Concepto Vet, empresa de melhoramento genético bovino, responsável por programas de reprodução animal massivos em milhares de municípios.
- A holding Farmlands, registrada nos Estados Unidos, com foco em agronegócio, biotecnologia e expansão territorial.
- A Jaguar – Produtos Indígenas, uma empresa que opera uma loja permanente dentro do Aeroporto Internacional de Brasília, vendendo artigos ditos “artesanais indígenas” — sem controle público sobre sua origem, autoria ou repasse de renda às comunidades supostamente representadas.
Esse portfólio empresarial opera em paralelo com a atuação institucional da CONAFER, que mantém convênios com o INSS, o Ministério das Comunicações, o Incra e secretarias estaduais — criando um circuito híbrido entre capital público e privado onde os indígenas são, ao mesmo tempo, público-alvo e fachada de legitimidade.
As alianças da CONAFER com figuras como o senador Chico Rodrigues (PSB-RR) — defensor do garimpo e investigado por lavagem de dinheiro e uso de aeronaves ligadas à mineração ilegal — ilustram como a organização se articula com setores conservadores e extrativistas, enquanto mantém um discurso de defesa da soberania indígena.
Em dezembro de 2024, por exemplo, a entidade firmou o acordo “Aliança pelo Campo” com o Incra, simultaneamente ao fortalecimento da “Embaixada dos Povos Indígenas” e à articulação de novos escritórios regionais. Tudo isso sob a mesma lógica: utilizar o discurso da representatividade para acessar recursos do Estado e da cooperação internacional.
A estratégia é clara: instrumentalizar a identidade indígena como valor de mercado, marca institucional e capital político. Ao se apresentar como interlocutor legítimo de milhares de povos, a CONAFER se habilita a negociar diretamente com ministérios, empresas, bancos, fundações e plataformas de impacto social — operando como uma “ONG privada” que utiliza o nome dos povos sem representá-los de fato.
O resultado é uma inversão perversa: enquanto comunidades indígenas enfrentam escassez de apoio, burocracia para acessar políticas públicas e resistência à demarcação de seus territórios, a CONAFER usufrui de convênios, publicidade institucional e presença midiática, baseada numa legitimidade construída sem consulta, sem pertencimento real e sem participação coletiva.
Esse modelo, baseado na lógica de “empreendedorismo indígena”, transforma saberes tradicionais em ativos de monetização, espiritualidade em performance pública e representação política em retórica comercial. É o que a Caipora denuncia como o extrativismo simbólico da nova era — aquele que não extrai ouro nem madeira, mas a própria identidade coletiva dos povos originários, para revender ao mercado e ao Estado como se fosse um produto com CNPJ.
A luta contra esse modelo não é corporativista: é uma luta pela autenticidade das vozes indígenas, pela integridade das formas de organização coletiva e pela proteção contra o uso político-comercial de nossas existências. Quando cocares viram vitrines e territórios viram palco de conveniências empresariais, o que está em jogo é a própria definição do que significa ser povo originário neste país.
Representação fabricada: o projeto de fragmentação da resistência indígena e o surgimento de entidades paralelas
Se a CONAFER atua como um corpo estranho dentro dos territórios indígenas, o seu projeto político vai além da infiltração. Trata-se de uma estratégia de substituição institucional, que tenta desmontar a legitimidade das organizações históricas do movimento indígena — como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), os conselhos regionais e as assembleias tradicionais — por meio da criação de entidades paralelas, controladas por lideranças cooptadas, financiadas e, em muitos casos, impostas por fora das dinâmicas territoriais legítimas.
O caso mais emblemático dessa tática foi a criação, em fevereiro de 2024, da chamada Embaixada dos Povos Indígenas, lançada por uma ex-funcionária da própria CONAFER, Maria Cícera Salustriano Caetano, da aldeia Xukuru do Ororubá (PE). A nova entidade, com sede em Brasília, se apresentou como uma “representação nacional alternativa” dos povos indígenas, mas sem qualquer participação das bases ou consulta às comunidades.
O projeto da Embaixada foi amplamente apoiado por figuras próximas ao presidente da CONAFER, Carlos Lopes, e contou com estrutura, divulgação, articulação política e circulação midiática proporcionadas pela Confederação. Foi lançado em tom de contraponto à APIB e à ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, ambas acusadas — nos bastidores da campanha — de “elitização”, “partidarismo” e “distanciamento das bases”, numa tentativa de criar rupturas internas no movimento indígena.
Esse tipo de operação não é nova na história da política indigenista brasileira. Desde a ditadura militar, há tentativas de formar “representações dóceis”, alinhadas com interesses do Estado e do capital. A novidade agora é o uso da identidade indígena como fachada para legitimar essas estruturas: cocares falsos, retórica de ancestralidade, uso estratégico de símbolos espirituais, tudo isso combinado com articulação parlamentar, alianças empresariais e discursos tecnocráticos.
A APIB respondeu imediatamente ao lançamento da Embaixada, afirmando, em nota pública, que não reconhece qualquer vínculo com a nova entidade, nem com seus objetivos. O texto alerta para os riscos de “iniciativas que não nasceram dos territórios, que não foram discutidas em assembleias, nem seguem os protocolos de consulta livre, prévia e informada”.
Essa movimentação tem implicações diretas na formulação de políticas públicas, na interlocução com o governo e organismos internacionais, e na disputa por fundos de cooperação e recursos internacionais destinados à proteção dos povos indígenas. Entidades fantasmas, como a Embaixada, criam ruído, fragmentam a representatividade e abrem brechas para que o Estado diga que está “dialogando” com indígenas — quando, na verdade, negocia com intermediários fabricados.
Mais grave ainda é a normalização dessa falsa pluralidade, onde qualquer um pode se autodeclarar representante dos povos indígenas, contanto que traga consigo apoio político, recursos logísticos ou conveniência ideológica. O resultado é o enfraquecimento das formas legítimas de organização, a desmobilização dos coletivos de base e o avanço de um modelo de empreendedorismo étnico que transforma a luta por direitos em vitrine institucional.
Essa reportagem da Revista Caipora sobre a atuação da CONAFER e de seu presidente, Carlos Lopes, revela uma trama complexa de fraudes, cooptação, manipulação simbólica e captura de representação indígena. Mais do que desvendar um esquema financeiro, o que está em jogo é o futuro da autonomia dos povos indígenas no Brasil: quem fala por nós? Quem decide em nosso nome? Quem manipula nossas imagens, nossas palavras, nossos corpos?
Carlos Lopes e a CONAFER não são um caso isolado. Representam uma nova fase da colonialidade, que não chega com espada ou grilhões, mas com termos de cooperação, ONGs com sede em aeroportos, convênios públicos e discursos de representatividade. São a face moderna de um velho projeto: o de silenciar os povos originários com sua própria imagem, domesticada, plastificada e vendida como produto de exportação.
A Caipora segue comprometida em denunciar esses processos, ouvindo as vozes legítimas dos territórios, fortalecendo a etnomídia indígena como ferramenta de resistência, e exigindo investigação, responsabilização e transparência por parte do Estado brasileiro e dos órgãos que permitiram a ascensão de um projeto que vende identidade em troca de influência.
A nossa luta não é apenas contra fraudes financeiras — é pela reivindicação da nossa palavra, do nosso tempo, da nossa história.