Aterro em Viamão: A Luta Guarani em defesa da Água e do Território Sagrado

VIAMÃO, RS – Na mata silenciosa da aldeia Jataity, o tempo corre em outro ritmo. É um tempo guiado pelo som dos pássaros, pelas rezas da madrugada e pela escuta atenta dos mais velhos. Ali, onde o solo guarda as memórias dos ancestrais e a água é espírito, os Mbya Guarani constroem, todos os dias, uma forma de vida baseada no cuidado com a terra — o teko porã, o “modo bom de viver”. Esse modo de vida é essencial para o Povo Guarani Viamão.1

“Estar na mata para nós é como estar dentro de uma farmácia. A terra é nossa mãe, então a gente cuida dela”, explica o cacique Jaime Vhera Guyrá, com um olhar que percorre a paisagem como se lesse um texto sagrado.3 “Água corrente pra nós é como o sangue da nossa mãe que tá correndo. É por isso que a gente tem bastante respeito pela natureza, porque ela também tem seu espírito”.3

Mas a menos de oito quilômetros deste território, o ritmo da cidade avança com uma proposta de “progresso” que tem cheiro de chorume e a assinatura de um dos maiores conglomerados de construção do país. Um projeto para instalar um aterro sanitário regional, capaz de receber 1.500 toneladas de lixo por dia de até 28 municípios, ameaça não apenas o modo de vida Guarani, mas uma das zonas geológicas mais frágeis do sul do Brasil: a área de recarga do Aquífero Quaternário.4

O que se desenrola em Viamão é mais do que um conflito ambiental. É um retrato de um Brasil onde os direitos indígenas são tratados como obstáculos burocráticos, a ciência é ignorada em favor de interesses econômicos e os territórios de comunidades marginalizadas são designados como zonas de sacrifício. Esta é a história de como uma crise de gestão de lixo, fabricada pela negligência política, pavimentou o caminho para um desastre ambiental anunciado. E de como um povo, que se recusa a ser enterrado, transformou sua resistência em um ato de cuidado pela terra e pela água de todos.

A PALAVRA SILENCIADA

Manifestantes temem que licença atual possa ser o “primeiro passo” para a concretização do aterro. Foto: Divulgação

A injustiça fundamental que alicerça o projeto do aterro sanitário em Viamão é a completa anulação da voz do povo Mbya Guarani. O processo de licenciamento avançou por anos em um silêncio institucional que viola frontalmente leis nacionais e internacionais.

O Brasil é signatário, desde 2004, da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), um tratado com força de lei que estabelece o direito à Consulta Prévia, Livre e Informada (CPLI).6 Este direito determina que povos indígenas devem ser consultados “mediante procedimentos adequados” sempre que medidas administrativas, como o licenciamento de um grande empreendimento, possam afetá-los diretamente.8 A consulta não é uma formalidade; é um processo de diálogo de boa-fé que deve ocorrer antes de qualquer decisão, com o objetivo de obter o consentimento da comunidade.9

Em Viamão, esse direito foi ignorado. O projeto foi concebido e o licenciamento iniciado sem qualquer comunicação com a aldeia Jataity, localizada dentro da Terra Indígena Guarani reconhecida pela Funai.11 A violação foi tão flagrante que se tornou o pilar das ações judiciais contra o empreendimento.

Em abril de 2025, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou uma Ação Civil Pública pedindo a suspensão imediata do licenciamento, citando o desrespeito à Convenção 169 e o risco de impactos diretos à comunidade.13 A Defensoria Pública do Estado (DPE/RS) já havia emitido uma recomendação formal à Fundação Estadual de Proteção Ambiental (FEPAM), alertando que a ausência de consulta “pode configurar violação a tratados internacionais […] além da Constituição Federal”.10

Somente após a pressão legal, a empresa responsável, a Empresa Brasileira de Meio Ambiente (EBMA), tentou realizar uma reunião com os indígenas. O encontro, ocorrido em maio de 2025, terminou antes mesmo de começar. Quando os representantes da empresa se preparavam para apresentar o projeto, o cacique Cláudio da Silva, de 28 anos, recusou-se a ouvir.

“Era meio que um golpe”, declarou o cacique à reportagem do Sul21.7 “Já está tudo atropelado, já está no final e agora que querem fazer consulta? Está tudo errado desde o início, não teve consulta e agora eles querem fazer, mas já está tudo pronto”.7A recusa do cacique expôs a manobra: uma tentativa de legitimar retroativamente um processo juridicamente nulo. Para os Mbya Guarani, a ofensa é ainda mais profunda. O território, para eles, não é um recurso, mas Tekoha — o lugar onde se realiza o Teko, o “modo de ser” Guarani.1 Sem Tekoha, não há Teko Porã, o “bem viver” em harmonia com o cosmos.1 A terra é um ser vivo, e a recusa em ouvir a palavra (Ayvu Porã) da comunidade é uma negação de sua própria existência.2

UMA BOMBA-RELÓGIO SOB A TERRA

Placa da Fepam diante da entrada da Fazenda Montes Verdes. Foto: Reprodução/Facebook

As violações de direitos são agravadas por uma desconsideração imprudente de evidências científicas. O local escolhido para o aterro, a Fazenda Montes Verdes, é, segundo múltiplos estudos, um dos piores locais possíveis do ponto de vista geológico e ambiental.

Sob a área corre o Aquífero Quaternário, uma vasta reserva de água subterrânea que abastece Viamão e outros municípios da região metropolitana.16 Este aquífero, no entanto, é extremamente vulnerável. A região é caracterizada por solos predominantemente arenosos, porosos e de alta permeabilidade, sem barreiras geológicas naturais, como camadas de argila, para impedir a infiltração de contaminantes.17

O perigo é amplificado pelo fato de o local ser uma zona de recarga direta, onde a água da chuva penetra no solo para reabastecer o aquífero.19 Instalar um aterro ali é como colocar uma fonte de veneno diretamente sobre a veia que alimenta um corpo d’água vital.

Esta escolha viola frontalmente a norma técnica ABNT NBR 13.896/1997, que recomenda expressamente evitar a instalação de aterros sobre áreas de recarga de aquíferos.10 A geóloga Maria Luiza Rosa, da UFRGS, que estudou a área, alertou em sessão na Câmara Municipal sobre o risco de vazamentos e a poluição de recursos hídricos que drenam para o Lago Guaíba e nascentes do Rio Gravataí.22

A evidência mais contundente da falha no processo vem de uma análise independente. A Nota Técnica do engenheiro ambiental Iporã Brito Possantti (2019) utilizou um modelo de otimização espacial com nove indicadores (proximidade de terras indígenas, unidades de conservação, geologia, etc.) para mapear a aptidão do município para receber um aterro.23 A conclusão foi inequívoca: a área da Fazenda Montes Verdes apresenta “aptidão muito baixa”. Mais importante, o estudo identificou outras áreas no município, na porção leste/sudeste, com aptidão muito superior e menor risco socioambiental.23

A existência deste estudo demonstra que a escolha do local não foi a única, nem a melhor, opção. A decisão de prosseguir, ignorando alertas científicos e alternativas mais seguras, revela um processo viciado, onde o discurso da “segurança tecnológica” é usado para legitimar uma decisão pré-determinada por interesses econômicos.

A POLÍTICA DO LIXO E O RACISMO AMBIENTAL

Para entender por que um projeto tão arriscado avança, é preciso analisar o contexto político. Há anos, a gestão de resíduos em Viamão é marcada pela precariedade. Em janeiro de 2025, moradores de diversos bairros voltaram a denunciar o acúmulo de lixo nas ruas, resultado de um serviço privatizado e ineficiente.24

Essa crise crônica, fruto de anos de negligência, cria um ambiente de urgência que é politicamente explorado para apresentar o aterro como a única saída. O que não se diz é que existem alternativas. Em 2022, a própria prefeitura inaugurou um grande posto de triagem em parceria com a cooperativa Coovir, com capacidade para processar mais de 150 toneladas de lixo por dia, promovendo reciclagem e gerando renda.25 Soluções como essa, no entanto, são preteridas em favor de um megaempreendimento privado.

Por trás do projeto está um consórcio de peso. A proponente é a EBMA (Empresa Brasileira de Meio Ambiente), controlada pela Vital Engenharia Ambiental, que por sua vez pertence ao gigante da construção Grupo Queiroz Galvão . O projeto é concebido como um aterro regional para atender até 28 municípios, incluindo Porto Alegre, transformando-o em um negócio multibilionário.4

A lógica de transferir o passivo ambiental de grandes centros urbanos para territórios rurais, habitados por comunidades indígenas e pequenos agricultores, tem um nome: racismo ambiental. O conceito foi explicitamente usado pela Defensoria Pública do RS ao analisar o caso, destacando que o ônus do projeto recai desproporcionalmente sobre um segmento vulnerabilizado da sociedade.10

A manobra política se estendeu à Câmara de Vereadores. Em 2021, uma lei municipal que exigia audiências públicas e aprovação legislativa para a instalação de aterros foi derrubada em uma votação apertada (12 a 9), abrindo caminho para que o projeto avançasse com menos escrutínio público.4

O TERRITÓRIO LUTA

Diante de um processo que os tornou invisíveis, os Mbya Guarani e seus aliados não se calaram. A resistência começou em 2019, com os primeiros protestos de moradores e ambientalistas do “Movimento Não ao Lixão” . Com o tempo, essa mobilização floresceu em uma aliança robusta, unindo a liderança espiritual indígena, o rigor científico de pesquisadores da UFRGS, a força jurídica do MPF e da DPE, e o apoio de organizações como a Amigos da Terra Brasil.

A luta se manifesta em múltiplas frentes: nas ações judiciais que questionam a legalidade do licenciamento; nos protestos que ocupam as ruas e a Câmara de Vereadores; e, fundamentalmente, nas práticas cotidianas que sustentam o Teko Porã na aldeia. Cada semente plantada, cada reza entoada, cada criança que aprende a língua Guarani é um ato político de permanência.

“A gente vive da nossa agricultura, da nossa roça. A gente vive da natureza. A gente não vive de lixo”, resume a liderança Jaime Vhera.11 A frase tornou-se um lema, encapsulando a essência de um conflito que opõe duas visões de mundo: uma que vê a terra como depósito, e outra que a entende como mãe.

A TERRA AINDA FALA

O projeto de aterro sanitário em Viamão é o retrato de um Brasil que insiste em criar zonas de sacrifício. Em nome de uma solução rápida para o lixo urbano, ele atropela direitos, ignora a ciência e silencia as vozes que há séculos cuidam da terra.

A luta em Viamão, no entanto, não é apenas sobre destruição. É, fundamentalmente, sobre resistência e a demonstração de que outro modelo de mundo é possível. Um modelo que não se baseia no descarte, mas no cuidado. O processo judicial segue, a ameaça persiste, mas uma convicção permanece intacta na aldeia Jataity: o território é sagrado, e nenhuma política de descarte tem o direito de enterrar essa palavra. Porque a terra, para os Guarani, ainda fala. E enquanto ela falar, haverá quem a escute e quem a defenda.


Referências

1 Periódicos UFMS. (s.d.). A importância da terra (tekoha) e do ‘teko porã’ na cultura Guarani.(https://periodicos.ufms.br/index.php/EIGEDIN/article/download/14070/9721/)

2 Instituto Humanitas Unisinos (IHU). (s.d.). Teko Porã e o caminho das belas palavras do povo Guarani. https://www.ihu.unisinos.br/categorias/644445-teko-pora-e-o-caminho-das-belas-palavras-do-povo-guarani-uma-resistencia-ancestral-artigo-de-margot-bremer

3 Nonada. (2016). Mbyá-Jeguatá: a procura de Nhanderu na Aldeia do Cantagalo. https://www.nonada.com.br/2016/07/mbya-jeguata-a-procura-de-nhanderu-na-aldeia-do-cantagalo/

4 Correio do Povo. (2021). Grupo protesta contra instalação de aterro sanitário no Centro de Viamão.(https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/geral/grupo-protesta-contra-instala%C3%A7%C3%A3o-de-aterro-sanit%C3%A1rio-no-centro-de-viam%C3%A3o-1.556110)

5 Dinheiro Público (Blog). (2023). Área de aterro sanitário da empresa EBMA. https://dinheiropublico.blog.br/area-de-aterro-sanitario-da-empresa-ebma-da-vital-ambiental-em-viamao-rs-e-a-mesma-que-recebeu-a-licenca-de-operacao-para-espalhamento-de-lodo-cinza-de-caldeira-e-de-varredura/

6 Ministério Público Federal (MPF). (s.d.). Protocolos de Consulta. https://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/documentos-e-publicacoes/protocolos-de-consulta

7 Sul21. (2025). Indígenas se recusam a ouvir projeto de aterro sanitário em Viamão: ‘Era meio que um golpe’. https://sul21.com.br/noticias/meio-ambiente/2025/05/indigenas-se-recusam-a-ouvir-projeto-de-aterro-sanitario-em-viamao-era-meio-que-um-golpe/

8 Ministério Público do Paraná (MPPR). (s.d.). Consulta Prévia, Livre e Informada. https://site.mppr.mp.br/direito/Pagina/Consulta-Previa-Livre-e-Informada

9 Conectas Direitos Humanos. (2021). Consulta prévia, livre e informada: veja a importância da Convenção 169 da OIT para os indígenas. https://conectas.org/noticias/consulta-previa-livre-e-informada-veja-a-importancia-da-convencao-169-da-oit-para-os-indigenas/

10 Defensoria Pública do RS. (s.d.). Defensoria recomenda consulta à comunidade indígena sobre impactos de aterro em Viamão. https://www.defensoria.rs.def.br/defensoria-recomenda-consulta-a-comunidade-indigena-sobre-impactos-de-aterro-em-viamao

11 GaúchaZH. (2019). Comunidade se mobiliza contra aterro sanitário em Viamão. https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2019/02/comunidade-se-mobiliza-contra-aterro-sanitario-em-viamao-cjs0k8kys02mp01lihh11hn1o.html

12 GaúchaZH. (2019). Prefeito admite que área em Viamão não serve para aterro sanitário. https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2019/02/prefeito-admite-que-area-em-viamao-nao-serve-para-aterro-sanitario-cjsl0nzzw024t01p81uptijq1.html

13 Sul21. (2025). MPF pede suspensão do licenciamento de aterro sanitário em Viamão. https://sul21.com.br/noticias/meio-ambiente/2025/04/mpf-pede-suspensao-do-licenciamento-de-aterro-sanitario-em-viamao/

14 Dinheiro Público (Blog). (s.d.). MPF entra na justiça para assegurar a consulta prévia. https://dinheiropublico.blog.br/mpf-entra-na-justica-para-assegurar-a-consulta-previa-das-comunidades-indigenas-em-viamao-e-a-nulidade-do-licenciamento-ambiental-de-aterro-sanitario-do-grupo-queiroz-galvao/

15 GEPEASE/UFGD. (s.d.). Cosmovisão do povo Guarani e Kaiowá.(https://gepease.com.br/esea/wp-content/uploads/2024/03/A-IMPORTANCIA-DA-COSMOLOGIA-DOS-GUARANI-E-KAIOWA-PARA-A-EDUCACAO-AMBIENTAL_IDENTIFICADO.docx.pdf)

16 Brasil de Fato. (2024). Ambientalistas protestam contra construção de aterro na cidade de Viamão (RS). https://www.brasildefato.com.br/2024/06/05/ambientalistas-protestam-contra-construcao-de-aterro-na-cidade-de-viamao-rs/

17 Brasil de Fato. (2024). Ameaça direta aos recursos hídricos. https://www.brasildefato.com.br/2024/06/05/ambientalistas-protestam-contra-construcao-de-aterro-na-cidade-de-viamao-rs/

18 Associação Brasileira de Águas Subterrâneas (ABAS). (s.d.). Estudo do comportamento e potencialidade do aquífero em Viamão. https://aguassubterraneas.abas.org/asubterraneas/article/view/22321

19 Associação Brasileira de Águas Subterrâneas (ABAS). (s.d.). Quantificação da recarga e das reservas do Aquífero Coxilha das Lombas. https://aguassubterraneas.abas.org/asubterraneas/article/view/23112

20 Associação Brasileira de Águas Subterrâneas (ABAS). (s.d.). Quantificação da recarga e das reservas do aquífero Coxilha das Lombas (PDF). https://aguassubterraneas.abas.org/asubterraneas/article/view/23112/15227

21 ResearchGate. (s.d.). Avaliação de áreas para instalação de aterro sanitário.(https://www.researchgate.net/publication/228914185_Avaliacao_de_areas_para_instalacao_de_aterro_sanitario_atraves_de_analises_em_SIG_com_classificacao_continua_dos_dados)

22 Jornal do Comércio. (2021). Grupo protesta contra a criação de aterro sanitário em área de Viamão. https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/jornal_cidades/2021/06/798121-grupo-protesta-contra-a-criacao-de-aterro-sanitario-em-area-de-viamao.html

23 Possantti, I. B. (2019). Nota técnica: mapa de aptidão locacional para a instalação de aterro sanitário no município de Viamão, RS.(https://padrejosimo.com.br/site/wp-content/uploads/2019/10/03_NotaTecnica_AptidaoViamao.pdf)

24 Brasil de Fato. (2025). Moradores reclamam de falta de coleta de lixo em Viamão (RS). https://www.brasildefato.com.br/2025/01/02/moradores-reclamam-de-falta-de-coleta-de-lixo-em-viamao-rs/

25 Prefeitura de Viamão. (2022). Viamão inaugura o maior projeto de triagem de resíduos sólidos da Região Metropolitana. https://www.viamao.rs.gov.br/portal/noticias/0/3/7130/viamao-inaugura-o-maior-projeto-de-triagem-de-residuos-solidos-da-regiao-metropolitana

Dinheiro Público (Blog). (2024). Área em Viamão da EBMA Vital Queiroz Galvão é imprópria ambientalmente. https://dinheiropublico.blog.br/area-em-viamao-da-ebma-vital-queiroz-galvao-e-impropria-ambientalmente-para-a-implantacao-de-aterro-sanitario/Brasil de Fato. (2020). Aterro Viamão: população do município gaúcho conquista uma importante vitória. https://www.brasildefato.com.br/2020/01/07/aterro-viamao-populacao-do-municipio-gaucho-conquista-uma-importante-vitoria/