Matinta Pereira: encontros e desencontros na resistência anticolonial

No imaginário popular contemporâneo a Matinta Pereira aparece como personagem “folclórico”, uma velha bruxa capaz de se transformar em pássaro agourento que pousa sobre os muros e telhados e se põe a assobiar, ameaçando os incautos com má sorte em troca da promessa de tabaco, café ou cachaça. Mas qual seria a origem dessas histórias? Como ela se relaciona com nossas culturas originárias? E que lições podemos aprender com ela?

Folclore é uma palavra que o colonizador criou para designar culturas que ele considera inferiores, atrasadas e supersticiosas, não é à toa que, no dicionário, folclórico é sinônimo de inverídico, fantasioso, pitoresco e antiquado. Folclore é sempre “do outro”, o nosso é cultura.

As histórias sobre a Matinta que chegaram até nós, bebem bastante na cultura do colonizador, mais precisamente nas histórias sobre as bruxas, elas próprias, caricaturas coloniais sobre as lideranças femininas dos povos originários da Europa pré-cristã. Segundo CABREIRA, 2012:

“Como nos conta a História e nos comprovam estudos arqueológicos houve uma época em que uma cultura ‘matrifocal’ regia nossa civilização. Tal cultura denomina-se ‘matrifocal’, e não ‘matriarcal’, pelo fato de não permitir, principalmente, distinções hierárquicas entre homens e mulheres. Não havendo relações baseadas no poder, os indivíduos relacionavam-se com o princípio do coletivo, do trabalho e vida em comunidade onde não havia espaço para guerras, ameaças e destruições de seus semelhantes. A vida era totalmente regida pela relação entre o indivíduo e a natureza. As mulheres, por seus ciclos menstruais e de fertilidade e gestação, eram diretamente relacionadas com os ciclos da natureza. A própria terra era considerada como a ‘grande mãe’, aquela que nutria e dava sustento àqueles que dela dependiam, daí a importância atribuída ao aspecto ‘feminino’, tanto do ser humano quanto da terra que habitava.(CABREIRA, 2012, p.23-24)

Comprometido com a ideologia patriarcal, que assegura o poder dos homens em nossa sociedade, o colonizador estigmatizou o papel dessas lideranças femininas, retratando-as como figuras decadentes e solitárias, quando muito, isoladas em seus próprios círculos, marginalizadas da sociedade, vinculando-as a tudo que o colonizador teme, como a escuridão, o mal, a morte, o vício e o “sobrenatural”. O colonizador nos ensinou a temer as bruxas, não àqueles que as lançaram às foqueiras.

Contudo, a tradição da Matinta Pereira remete a histórias muito anteriores. Etimologicamente, Matinta Pereira vem do nheengatu aportuguesado: mati tapereira. Segundo o Dicionário de Estudos de Nheengatu Tradicional do professor Yaguarê Yamã e colaboradores, “mati” significa: passarinho noturno, que dizem ser agourento. Enquanto “tapera” significa: casa velha (abandonada). Assim, “mati tapereira” pode ser entendido como “pequeno pássaro noturno que habita casas abandonadas“. Um termo tradicionalmente usado para identificar uma espécie em particular, de hábitos noturnos e canto estridente, cientificamente chamada de Tapera naevia e popularmente conhecida como saci.

Sobre ele, o viajante e etnólogo ítalo-brasileiro Ermanno Stradelli, em sua obra, Lendas e Notas de Viagens, no início do século XX, registra que: “segundo a crença indígena, os feiticeiros e pajés se transformam neste pássaro para se transportarem de um lugar para outro e exercer suas vinganças.”

Tal vínculo, entre o pássaro nativo mati tapereira e a pajelança ancestral é o que pode explicar a ligação da Matinta Pereira com o tabaco, planta sagrada utilizada pelos pajés em seus rituais. É possível que este vínculo ancestral, entre o pássaro noturno de canto estridente, os pajés e o tabaco, a partir da violência colonial, tenha sido distorcido para se relacionar às bruxas do imaginário colonial europeu e à visão preconceituosa do colonizador sobre nossas plantas sagradas, que ele associa ao vício e à degeneração, daí as histórias sobre a velha bruxa que exige tabaco, café ou cachaça, ameaçando incautos, para alimentar seus supostos vícios.

A verdade, porém, sobre a origem da lenda, porém, só é completamente revelada para nós, guardiões das memórias de nossos ancestrais e conhecedores da natureza e do contexto onde surgem essas narrativas. Nossos ancestrais nômades originários não temiam a morte, mas a compreendiam como uma parte indissociável da vida, por isso, não tínhamos cemitérios, nossos mortos eram enterrados dentro de casa. Seguiam convivendo conosco até, mais uma vez, nossa aldeia fosse mudada de lugar. Quando construímos uma nova aldeia, a antiga tornava-se uma clareira na mata, uma tapera, onde permaneciam enterrados nossos mortos, tais taperas eram o ambiente ideal para pássaros insetívoros como o arisco Tapera naevia, cujo canto peculiar sempre chamou nossa atenção. Assim, surgiu o vínculo entre esta curiosa ave, as taperas e nossos mortos, deturpado pela folclorização do colonizador, que se apropria e distorce as narrativas que não compreende.

A este caldo cultural de memórias ancestrais distorcidas pelo colonizador, soma-se, ainda, a influência da diáspora africana, através da tradição iorubá de culto ao sagrado feminino através de Ìyámi Oxorongá, tradicionalmente representada pela coruja branca (Tyto Alba), também conhecida como rasga-mortalha ou suindara. Como esclarece Carlos Moura (1994), em sua obra, “As senhoras do pássaro da noite”.

Afinal, o nome rasga-mortalha e o vínculo que ele evoca entre as corujas e a morte não faria qualquer sentido para nossos ancestrais, que desconheciam a existência e utilidade das mortalhas. Também é muito provável que as ocas e tabas de nossos ancestrais não fossem tão atrativas para as corujas quanto as cidades repletas de roedores e prédios altos, que oferecem o habitat ideal para elas, de maneira a tornar o encontro entre nossos ancestrais e estes animais muito menos frequente e relevante. Por fim, as Tyto Alba são, em média, dez vezes maiores que qualquer exemplar de Tapera Naevia, o que torna difícil acreditar que nossos ancestrais se referisse às corujas como “mati“, passarinho. Ao que tudo indica, eventualmente, as histórias sobre a “mati tapereira” indígena se sincretizaram à tradição africana das Ìyámi Oxorongá para dar origem à versão na qual a Matinta Pereira passa a assumir a forma da temida rasga-mortalha.

Tudo tem uma história, nada surge do nada ou sem um contexto. A história da nossa Matinta Pereira é uma história de resistência diante do apagamento imposto pelo colonizador, mas, também, do sincretismo de diferentes tradições originárias, em um contexto de brutal violência colonial. E é nosso dever lembrar de suas raízes ancestrais e lançar sobre elas nossos olhar crítico, buscando compreender o impacto das distorções coloniais na forma como essas histórias vem sendo recontatas. Assim, honramos nossos ancestrais e sua história de luta e resistência ao apagamento colonial.

Referências bibliográficas:

CABREIRA, R.H.U. A Condição Feminina em Sociedade: uma releitura de ‘A Letra Escarlate’ de Nathaniel Hawthorne. São Paulo: Blucher, 2012.

YAMÃ, Y. YAGUAKAG, E. REIS, E. JOSÉ, M. Dicionários de Estudo Nheengatu Tradicional. Independently Published, 2021.

STRADELLI, E. Lendas e notas de viagem: A Amazônia de Ermanno Stradelli. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

MOURA, C. E. M. As senhoras do pássaro da noite. São Paulo: Edusp, 1994.