A COP do Fim do Mundo: “Mercado Dentro, Amazônia Fora”

A 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), sediada em Belém do Pará, foi anunciada como a “COP da Floresta” ou a “COP dos Povos”. No entanto, para Ailton Krenak, líder indígena e voz seminal do pensamento decolonial no Brasil, a realidade do evento é outra. Sua análise, de uma clareza cortante, define a estrutura e o propósito real da cúpula: “A sociedade fora, os Povos Originários fora, a Amazônia fora, e o mercado dentro. Esse é o resumo da COP”.1

Esta definição não é uma hipérbole poética; é a descrição literal da arquitetura logística, econômica e epistêmica do evento. A COP30, antes mesmo de seu início formal em novembro de 2025, expôs sua contradição fundamental não em seus discursos, mas em sua infraestrutura. A exclusão dos povos não é um fracasso acidental de planejamento; é a manifestação física da lógica de mercado que Krenak denuncia.

A Crise Logística como Filtro Socioeconômico

A controvérsia central que antecedeu a cúpula foi a crise logística e de hospedagem em Belém. A denúncia, encapsulada pelo slogan “Sem leito, sem povo”, revelou a fratura exposta entre a retórica da inclusão e a realidade da exclusão.2

A cidade de Belém, com sua rede hoteleira limitada a cerca de 15.000 leitos, viu-se diante de uma expectativa de 45.000 visitantes oficiais, sem contar os milhares de membros da sociedade civil, ativistas e jornalistas.2 A inevitável “crise de logística” foi imediatamente capturada pela especulação desenfreada. Países africanos e outros membros do Sul Global, os mais vulneráveis às mudanças climáticas e, teoricamente, os protagonistas da conferência, ameaçaram solicitar a mudança da sede do evento, citando a impossibilidade de arcar com os custos de hospedagem.2

Enquanto o governo brasileiro tentava soluções emergenciais, como o uso de navios e a liberação de espaços públicos, a rede hoteleira, livre da regulação de preços, impôs tarifas exorbitantes.2 É neste ponto que a análise de Ailton Krenak se mostra fundamental. Comentando sobre a especulação, ele diagnosticou que “essas contradições são mera lógica de mercado”.3

O que Krenak identifica é que o mercado hoteleiro de Belém estava simplesmente aplicando a mesma lógica que o mercado financeiro global aplica dentro dos pavilhões da COP. A especulação não foi um “problema” para o evento; foi a pré-condição do evento. O “mercado”, ao qual Krenak se refere, agiu como um filtro socioeconômico eficaz, garantindo que o acesso físico à sua própria casa, a Amazônia, fosse negado aos povos da floresta, aos ativistas do Sul Global e a qualquer um sem o capital necessário para pagar o pedágio.1

A imagem desta exclusão tornou-se um símbolo poderoso: enquanto as zonas oficiais (a “Zona Azul” da ONU e a “Zona Verde” corporativa) 4 se preparavam para receber delegações e lobistas, flotilhas indígenas navegaram 3.000 quilômetros pelos rios amazônicos para protestar em Belém. O motivo, explicitado por um dos organizadores, foi o fato de terem sido “excluídos de muitos espaços de debate”.5 A exclusão física dos povos indígenas da “COP da Amazônia” é a metáfora mais precisa para a exclusão de suas epistemologias das “soluções” climáticas.

O Balcão de Negócios e a Exclusão Epistêmica

Para Krenak, a COP30 corre o risco de se tornar nada mais que um “balcão de negócios”.1 A pauta ativa, ele adverte, não é o clima ou a sobrevivência do planeta, mas sim “negócios”, transformando a totalidade da crise ecológica em uma “dinâmica financista”.1

Esta percepção não é isolada. Uma pesquisa da Quaest revelou que, nas redes sociais, 37% das menções à COP30 já eram críticas 6, indicando um ceticismo generalizado da sociedade que vai muito além dos círculos ativistas.

A narrativa oficial de uma cúpula de “soluções” já enfrenta um risco visível de fracasso e desgaste da imagem do Brasil.7 No entanto, o fracasso epistêmico é mais profundo que o fracasso logístico. Ao permitir que a “mera lógica de mercado” 3 dite quem pode estar fisicamente presente em Belém, a COP30 revelou, antes de seu início, que a “dinâmica financista” 1 já venceu a disputa interna. A conferência não é sobre mudar o sistema que criou a crise; é sobre como o sistema pode lucrar com a crise que criou. O “mercado” não está apenas dentro da COP; ele é a COP.

O Verniz Verde sobre o Petróleo e a Soja

Enquanto a logística excludente de Belém filtrava a participação popular, o governo anfitrião, o Brasil, preparava-se para apresentar ao mundo sua própria contradição fundamental: o “paradoxo extrativista”.8 A administração de Luiz Inácio Lula da Silva chegou a Belém com uma dualidade esquizofrênica. De um lado, o Ministério do Meio Ambiente e o Itamaraty promoviam uma imagem de liderança climática global, centrada na proteção da Amazônia e em mecanismos financeiros inovadores como o Fundo Florestas Tropicais para Sempre (TFFF).9

Do outro lado, o Ministério de Minas e Energia e a Petrobras trabalhavam ativamente para expandir a fronteira fóssil, com o objetivo de transformar o Brasil no quarto maior produtor de petróleo do mundo.8 Esta não é uma simples hipocrisia; é um plano de negócios. O “dilema de Lula” 11 entre ambiente e petróleo não é, na verdade, um dilema. É uma estratégia coerente com a lógica do capitalismo verde: usar os lucros do extrativismo sujo (petróleo) para financiar a financeirização da natureza limpa (créditos de carbono, bioeconomia). O Brasil não está constrangido por seu paradoxo; ele veio à COP30 para exportá-lo como um modelo viável.

O Brasil não está constrangido por seu paradoxo; ele veio à COP30 para exportá-lo como um modelo viável.

O Petróleo na Foz: A Traição Cosmocida

A contradição mais flagrante é a insistência do governo em explorar petróleo na bacia da Foz do Amazonas.8 Poucas semanas antes da COP, a Petrobras obteve a licença para perfuração, sinalizando que a expansão fóssil é uma política de Estado. A justificativa oficial, defendida por Lula, é que os lucros do petróleo são essenciais para financiar a transição energética do país.

Essa narrativa é vista como uma traição pelos povos originários, os guardiões da região. O Cacique Raoni Metuktire, uma das mais importantes lideranças indígenas do planeta, criticou publicamente a decisão. “Não concordo com essa perfuração. É um problema para todas as pessoas e ruim para os Povos Indígenas”, declarou Raoni, afirmando que a decisão do governo “contraria [sua] defesa histórica das florestas”. O cacique já havia aconselhado Lula pessoalmente a não explorar a Foz durante uma visita ao Xingu e prometeu levar a denúncia ao plenário da COP30, onde falará às autoridades “para protegerem o meio ambiente e nossas florestas”, o que envolve o fim dos combustíveis fósseis.

A oposição indígena não é simbólica; é jurídica e cosmologicamente fundamentada. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) estão entre as oito organizações que acionaram a Justiça para anular a licença, citando danos irreversíveis à biodiversidade e às comunidades. A Coiab denunciou o que chamou de “Leilão da Morte”, que coloca 68 blocos de exploração na Amazônia, ameaçando diretamente terras indígenas e expondo a contradição do discurso climático do governo.

Para os povos da região, a exploração de petróleo não é um “negócio”, é uma violência e uma atrocidade. A cosmologia indígena não separa a água, a floresta e a vida. Para as comunidades tradicionais, a água não é uma commodity, mas sim “o habitat e fonte de vida”. A exploração ameaça diretamente a sobrevivência física e espiritual desses povos, que dependem da biodiversidade da Foz para sobreviver. Como afirmaram os caciques do Oiapoque em carta aberta, a perfuração representa uma escolha existencial: “o petróleo não pode valer mais do que nossas vidas, nossas águas, nossos modos de existência”.

O Agronegócio: A Fome Verde e o Lobby na COP

A segunda frente do paradoxo é o agronegócio. O Brasil historicamente evita reconhecer o papel central da pecuária e da agricultura intensiva em suas emissões, que vêm primariamente do desmatamento.8

Para a COP30, o setor preparou seu grande teatro de greenwashing: a “AgriZone”.27 Coordenada pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e financiada por corporações como Bayer e Nestlé, a AgriZone foi projetada para vender a narrativa da “Agricultura Sustentável” e da “agricultura tropical em harmonia com a floresta tropical”.

No entanto, por trás desse “verniz verde” 27 está o aspecto abjeto de um modelo de negócios que se alimenta de conflitos e fome. O estado do Mato Grosso do Sul (MS), por exemplo, anunciou que levaria sua “experiência de sucesso” em “pecuária competitiva e sustentável” para a COP30, em parceria com a Famasul (Federação da Agricultura e Pecuária de MS) e a Embrapa. O MS é, ironicamente, o epicentro de uma guerra de extermínio contra os povos Guarani Kaiowá, impulsionada exatamente por esse agronegócio.

Relatos do território da TI Guyraroká, em Caarapó (MS), descrevem a comunidade como “espremida” entre lavouras de soja, onde pesquisas constataram a presença de agrotóxicos em todas as fontes de água, incluindo a da torneira, as nascentes e a chuva. Em 2024, fazendeiros realizaram ataques armados contra a retomada Guarani Kaiowá em Douradina (MS), deixando 11 indígenas feridos. Como denunciou a líder Janete Guarani Kaiowá na ONU, o agronegócio (soja, açúcar e carne) é produzido “com nosso blood”, citando 500 assassinatos de indígenas no MS nos últimos 15 anos.

No Paraná, a situação se repete com o povo Avá-Guarani. Um estudo revelou que mais de 60% de suas terras estão dominadas pela soja, milho e pecuária, enquanto eles resistem em apenas 1,3% do território. Essa usurpação, impulsionada pela expansão agrícola e pela barragem de Itaipu, resulta em fome crônica, com famílias dependendo de restos de alimentos do lixão de Guaíra, e em contaminação constante por agrotóxicos pulverizados nas aldeias.

As mesmas empresas que lucram com esse conflito buscam legitimação na COP. Gigantes como Cargill, Bunge, C. Vale e Coamo foram identificadas como compradoras de soja cultivada em terras reivindicadas pelos Guarani Kaiowá. Um relatório intitulado “A COP dos Lobbies” expôs como corporações com vastos passivos socioambientais, incluindo Bayer, Marfrig/BRF e a mineradora Vale, patrocinaram ativamente espaços na COP30 para praticar um “greenwashing estrutural” e influenciar as negociações.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) denunciou a AgriZone como um palco onde “os protagonistas serão os culpados pela crise ambiental”. A presença desse lobby é a garantia de que a lógica extrativista do acordo UE-Mercosul (a troca de “vacas por carros” 8 que impulsiona o desmatamento) não seja desafiada, mas sim celebrada como “sustentável”.

A Linguagem da Adaptação: A Crítica de Krenak à “Bioeconomia”

É aqui que a voz de Ailton Krenak novamente oferece a chave analítica para decifrar a estratégia brasileira. O termo-chave do governo para conciliar o paradoxo é “bioeconomia”. Apresentada como uma alternativa de desenvolvimento sustentável para a Amazônia, a bioeconomia é, para Krenak, a própria essência do problema.1

Mesmo reconhecendo a boa vontade de figuras como a Ministra Marina Silva, Krenak critica o discurso da bioeconomia por “repetir a exploração sob nova roupagem”.1 Ele argumenta: “Quando se fala em bioeconomia, acena-se para que alguma dinâmica econômica dê continuidade aos processos de exploração brutal que acontecem na Amazônia”.1

Sua conclusão define perfeitamente a lógica do capitalismo verde que o Brasil busca liderar: “Não é um ‘não’ ao sistema, é uma adaptação”.1

O que o Brasil apresentou na COP30 não foi uma ruptura com o extrativismo, mas sua adaptação. O plano é claro: o petróleo paga pela infraestrutura, o agronegócio paga pela balança comercial, e a “bioeconomia” paga pela legitimidade internacional, permitindo que a “dinâmica financista” 1 siga seu curso, agora sob o rótulo de “sustentável”. A COP30, sediada na Amazônia, torna-se o palco global para a legitimação dessa “mesma exploração”.1

O Príncipe, a Coroa e o Haka: Hipocrisia Colonial em Dois Atos

A diplomacia climática é, em grande medida, um teatro. E na COP30 em Belém, o mundo assistiu a uma performance magistral de soft power colonial, seguida por um ato de insurgência decolonial do outro lado do mundo. A justaposição desses dois eventos expõe a hipocrisia fundamental que sustenta a arquitetura da governança climática global.

O protagonista desse teatro é o Príncipe William, herdeiro da Coroa Britânica. Sua presença na Amazônia foi projetada para sinalizar o “apoio real” à causa climática.12 Contudo, enquanto William discursava sobre “ouvir” os povos indígenas no Brasil, o governo que atua em nome da mesma Coroa Britânica, na Nova Zelândia (Aotearoa), estava ativamente engajado em um ataque legislativo direto à soberania do povo indígena Maori.13

Este paralelo não é uma coincidência; é a exibição da estratégia colonial em sua forma moderna: benevolência performática onde não se detém o poder soberano (Brasil) e opressão legalista onde se detém (Nova Zelândia).

Ato I: A Encenação em Belém (O Príncipe “Ouvinte”)

No palco da COP30, o Príncipe William desempenhou o papel do colonizador esclarecido. Ele deu total apoio à iniciativa brasileira do Fundo Florestas Tropicais para Sempre (TFFF), elogiando-a como um “passo visionário” para a estabilidade climática.9

O ápice de sua performance foi a apropriação da retórica decolonial. Em seu discurso, William declarou: “a verdadeira liderança climática significa ouvir aqueles que vivem em harmonia com a natureza e empoderá-los como guardiões dos mais preciosos ecossistemas”.15 Ele concluiu, pedindo ao mundo que “honre a leadership” (liderança) dos povos indígenas e comunidades locais.16

O discurso foi uma obra-prima de relações públicas: o herdeiro da maior força colonial da história moderna posicionando-se como um aliado humilde, pronto para “ouvir” e “empoderar”.

Ato II: A Realidade em Aotearoa (A Coroa “Conquistadora”)

Enquanto William falava em “ouvir” no Brasil, os povos indígenas Maori na Nova Zelândia estavam gritando para serem ouvidos em sua própria terra, e sendo ativamente silenciados pela Coroa.

O conflito centra-se no Tratado de Waitangi de 1840, o documento fundador da Nova Zelândia, assinado entre a Coroa Britânica e mais de 500 chefes Maori.13 O tratado, que existe em duas versões linguísticas conflitantes (uma tática colonial clássica), garantia aos Maori a “Tino Rangatiratanga” (soberania absoluta), algo que a versão em inglês traduziu convenientemente como “governança”.13

Em 2024 e 2025, o novo governo de coalizão de centro-direita da Nova Zelândia, agindo em nome da Coroa, iniciou um ataque direto a este tratado. Um novo “Projeto de Lei dos Princípios do Tratado” (Treaty Principles Bill), proposto por um partido libertário da coalizão, busca redefinir unilateralmente os princípios do tratado, diluindo os direitos Maori e revertendo décadas de avanços legais.13 Críticos e o próprio Te Pāti Māori (Partido Maori) denunciaram o projeto como “colonialista”, “racista” e uma tentativa de destruir a soberania indígena.14

A resposta Maori não foi um pedido de diálogo nos termos do colonizador. Foi um ato de insurgência decolonial.

Em um evento que ecoou pelo mundo, parlamentares do Te Pāti Māori executaram o haka — uma dança de guerra tradicional — dentro da câmara do parlamento para protestar contra a votação do projeto.17 A deputada Hana-Rawhiti Maipi-Clarke rasgou uma cópia do projeto de lei, um ato que levou à suspensão dos parlamentares.18 Fora do parlamento, uma hīkoi (marcha de protesto) de nove dias mobilizou mais de 42.000 pessoas, uma das maiores manifestações da história do país, que culminou em frente ao parlamento.18

A Estratégia Colonial de 1852: A “Arma Fumegante”

A contradição entre o “ouvir” de William no Brasil e o “atacar” da Coroa na Nova Zelândia é perfeitamente explicada por um documento histórico de 1852, encontrado no New Zealand Spectator and Cook’s Strait Guardian.19

Neste documento, um funcionário colonial britânico descreve a estratégia para a subjugação do povo Maori. A citação é reveladora:

“Ele [o Maori] está gradualmente aprendendo o valor da propriedade… E este é um grande passo para a subjugação do país. Como inimigo, o Maori será mais vulnerável quando tiver algo a perder; o mero selvagem não tem nada a perder além da vida… A política… levará… à eventual colonização confortável do país…”.19

Este documento de 1852 é a “arma fumegante”. Ele revela que a estratégia colonial britânica nunca foi a aniquilação direta (embora esta tenha ocorrido) 20, mas sim a assimilação econômica. A estratégia era ensinar ao Maori o “valor da propriedade” e integrá-lo à economia de mercado, tornando-o “vulnerável” e, assim, subjugando-o.

O paralelo com a COP30 é cirúrgico e devastador.

O “capitalismo verde” e a “bioeconomia” 1 — elogiados por figuras como o Príncipe William — são a versão do século XXI desta estratégia de 1852. Trata-se de ensinar aos povos indígenas o “valor” de seus “ativos” (carbono, biodiversidade, floresta em pé) e integrá-los à “dinâmica financista”.1 O objetivo não é o “empoderamento” 15, mas a subjugação 19, tornando-os vulneráveis às flutuações do mercado e dependentes de contratos confidenciais.21

O Príncipe William, em Belém, estava promovendo a subjugação econômica, chamando-a de “empoderamento”. Os Maori, na Nova Zelândia, estavam resistindo a essa mesma subjugação, chamando-a pelo seu nome verdadeiro: colonialismo.14 A COP30, portanto, não é apenas um “balcão de negócios” 1; é o mais recente palco dessa performance colonial global.

Desconstruindo o Capitalismo Verde

A hipocrisia dos atores, seja o “paradoxo extrativista” do Brasil 8 ou a “performance colonial” do Reino Unido 13, é um sintoma de uma doença muito mais profunda: a falha estrutural dos próprios mecanismos propostos como solução. A COP30 é o “teatro climático do capitalismo” 22, um espetáculo onde a crise criada pelo sistema é apresentada como uma nova e excitante “oportunidade para fazer dinheiro”.24

Se o problema é o “capitalismo fóssil”, a solução apresentada em Belém é o “capitalismo verde”.25 Como Daniel Munduruku, escritor e filósofo indígena, diagnostica, esta é a “mesma lógica que acabou por nos trazer aonde estamos hoje”.26 É a mesma doença, mas com um “verniz verde” 27 aplicado sobre a “sujeira do capitalismo”.27

Para entender essa farsa, é preciso dissecar seus dois pilares operacionais: os mercados de carbono (a comoditização da natureza) e as finanças ESG (a financeirização da culpa).

O Colonialismo de Carbono (Mercados)

A peça central da “dinâmica financista” 1 da COP30 são os mercados de carbono. Em um manifesto contundente publicado às vésperas da cúpula, 55 movimentos e organizações sociais de 14 países da América Latina e Caribe (representando povos indígenas, afrodescendentes e comunidades camponesas) denunciaram esses mecanismos como uma “falsa solução”.21

O manifesto desmascara a lógica dos mercados de carbono:

  • Não Reduzem Emissões: Eles não são projetados para reduzir emissões na fonte. Eles são projetados para permitir que as corporações e os países poluidores do Norte Global “evitem cortes obrigatórios de suas emissões”.21
  • É Colonialismo de Carbono: O mecanismo funciona usando os territórios do Sul Global (florestas, terras indígenas) para “gerar créditos de carbono”.21 Esses créditos são então comprados pelos poluidores para “lavar a imagem” 21 e continuar poluindo. É uma nova forma de colonialismo, onde o Sul Global é explorado não por seus recursos materiais (embora isso continue), mas por sua capacidade de absorção de poluição.
  • Gera Apropriação de Terras (Land Grabbing): A promessa de pagamentos por projetos de carbono (como plantações de monoculturas de árvores, pecuária extensiva e monoculturas de grãos disfarçadas de “captura”) está alimentando uma nova onda de apropriação de terras (land grabbing).21 Mais de 80 exemplos foram citados, cobrindo dois milhões de hectares na região.21
  • Destrói Comunidades: Esses projetos dividem comunidades, destroem sistemas alimentares locais e prendem os povos indígenas em contratos confidenciais, muitas vezes sem que eles entendam os riscos assumidos ou os direitos que estão cedendo sobre seus próprios territórios.21

Os mercados de carbono, portanto, não resolvem a crise climática. Eles a financeirizam, transformando o direito de poluir em uma commodity e o território indígena em um ativo financeiro para compensar essa poluição.

A Farsa das Finanças (ESG)

O segundo pilar é o “investimento sustentável”, conhecido pela sigla ESG (Ambiental, Social e Governança). O “capitalismo verde” é, em sua essência, uma “farsa”.24 Um artigo em Outras Palavras o define como um “placebo perigoso” e um “greenwashing sistêmico”.24

A lógica do ESG é sedutora, mas falha. Ela substitui a regulação mandatória (a única coisa que poderia forçar o capital a mudar) por medidas voluntárias impulsionadas pelo mercado.24 A premissa é que o mercado, por si só, “premiará” as empresas “boas” e punirá as “ruins”.

A realidade, no entanto, é que os fundos ESG não têm demonstrado impactos ambientais positivos reais.24 A sigla serve principalmente para construir uma imagem “verde” para o mercado financeiro global, permitindo-lhe continuar a lucrar com a destruição.24

Pior ainda, o ESG coopta a própria linguagem da mudança. Como aponta a análise, ele busca “reconfigurar os meios legítimos de ativismo social”.24 Em vez de ação coletiva e contestação (sindicatos, movimentos populares), o cidadão é incentivado a “se engajar” como um investidor individual, comprando um fundo ESG. É a “financeirização… também do ativismo”.24

A Voz de Munduruku: A Crítica Epistêmica da “Mesma Lógica”

Daniel Munduruku oferece uma síntese epistêmica dessa farsa. Em entrevista à Folha de S.Paulo, ele expressa seu ceticismo total em relação à COP30, mesmo ela acontecendo em Belém, sua região natal.26

Munduruku aponta que, após 29 COPs anteriores, o único resultado tangível foi a criação de novas palavras: “É óbvio… que vai render uma coisinha ou outra, uma palavra nova vai surgir, como surgiu sustentabilidade, economia verde, economia circular”.26

Mas, ele conclui, essas novas palavras apenas mascaram a velha realidade. É a “mesma lógica que acabou por nos trazer aonde estamos hoje”.26 A lógica do capitalismo verde 28, da bioeconomia 1 ou da sustentabilidade 26 é a mesma lógica da extração, apenas com um marketing melhorado.

O resultado, para Munduruku, é inevitável: “O mundo continua à beira do caos”.26 A “adaptação” de Krenak 1 e a “mesma lógica” de Munduruku 26 são o mesmo diagnóstico. O “capitalismo verde” não é uma solução para a crise climática; é uma adaptação do capitalismo à crise climática. É um mecanismo para garantir sua própria sobrevivência e lucratividade, mesmo diante da catástrofe que ele próprio criou e continua a acelerar.

A COP30, com seus escândalos logísticos, seu paradoxo extrativista e sua hipocrisia colonial, é o espetáculo final de um sistema em decomposição. É a “adaptação” 1 de Krenak e a “mesma lógica” 26 de Munduruku. É o Príncipe William elogiando o “empoderamento” 15 enquanto sua Coroa pratica a “subjugação”.19 É o “balcão de negócios” 1 onde a Amazônia foi colocada à venda.

A verdadeira ação climática, portanto, não está acontecendo nos pavilhões climatizados de Belém. A verdadeira ação climática é decolonial e insurgente.

Está no haka dos parlamentares Maori 17 que se recusam a ter sua soberania redefinida por uma instituição colonial.

Está no manifesto dos 55 movimentos 21 que denunciam o “colonialismo de carbono” e defendem seus territórios contra o land grabbing.

Está na luta pela “autonomia contracolonial” 33 no Baixo Tapajós e na reivindicação do “Tempo do Mato” 40 pelos Xokleng.

A saída para o fim do mundo que o capitalismo verde tenta gerenciar não virá de suas planilhas, de seus créditos de carbono ou de suas finanças ESG. A saída virá da ruptura total com essa lógica. Virá da reafirmação de um paradigma onde a vida não é um negócio, onde a floresta não é um ativo e onde a humanidade se entende como “parte integrante da Naturaleza, sem pretender dominá-la”.29 A COP é o espetáculo. A insurgência é o caminho.

Referências citadas

  1. Ailton Krenak: COP30 não pode virar balcão de negócios – Instituto …, acessado em novembro 11, 2025, https://ihu.unisinos.br/categorias/656976-ailton-krenak-cop30-nao-pode-virar-balcao-de-negocios
  2. Sem leito, sem povo: COP30 se aproxima sob críticas por falta de …, acessado em novembro 11, 2025, https://www.brasildefato.com.br/2025/08/04/sem-leito-sem-povo-cop30-se-aproxima-sob-criticas-por-falta-de-estrutura-e-exclusao-em-belem/
  3. A ‘COP da implementação’ e as contradições do modelo de concertação internacional na política ambiental – Brasil de Fato, acessado em novembro 11, 2025, https://www.brasildefato.com.br/colunista/observatorio-das-metropoles/2025/10/21/a-cop-da-implementacao-e-as-contradicoes-do-modelo-de-concertacao-internacional-na-politica-ambiental/
  4. COP 30: acompanhe os principais fatos e decisões da conferência em Belém, acessado em novembro 11, 2025, https://abcdoabc.com.br/cop-30cobertura-especial-do-abcdoabc/
  5. Busca: indigena – Folha de S.Paulo – UOL, acessado em novembro 11, 2025, https://search.folha.uol.com.br/search?q=indigena&site=online
  6. COP30: 37% das menções nas redes sociais são críticas à Conferência do Clima, diz pesquisa Quaest | Exame, acessado em novembro 11, 2025, https://exame.com/esg/cop30-37-das-mencoes-nas-redes-sociais-sao-criticas-a-conferencia-do-clima-diz-pesquisa-quaest/
  7. Críticas à COP30 expõem risco de fracasso e desafiam imagem do Brasil – Noticias R7, acessado em novembro 11, 2025, https://noticias.r7.com/brasilia/criticas-a-cop30-expoem-risco-de-fracasso-e-desafiam-imagem-do-brasil-09112025/
  8. Brasil, COP30 e o paradoxo extrativista: entre o “greenwashing” e o …, acessado em novembro 11, 2025, https://esquerdaonline.com.br/2025/11/10/brasil-cop30-e-o-paradoxo-extrativista-entre-o-greenwashing-e-o-negacionismo-reacionario/
  9. Príncipe William elogia iniciativa do Brasil para proteção das …, acessado em novembro 11, 2025, https://jornalgrandebahia.com.br/2025/11/principe-william-elogia-iniciativa-do-brasil-para-protecao-das-florestas-tropicais-durante-a-cop30-em-belem/
  10. Invitation to major oil companies for COP30 sparks controversy in Belém – YouTube, acessado em novembro 11, 2025, https://www.youtube.com/watch?v=ZmnqKuJQ_jU
  11. COP30 expõe dilemas de Lula entre ambiente, petróleo, economia …, acessado em novembro 11, 2025, https://www.bloomberglinea.com.br/cop30/cop30-expoe-dilemas-de-lula-entre-ambiente-petroleo-economia-e-eleicoes-de-2026/
  12. King Charles, son William give royal support to COP30 climate summit – India Today, acessado em novembro 11, 2025, https://www.indiatoday.in/environment/story/british-king-charles-prince-williams-cop30-brazil-belem-support-united-states-climate-change-global-warming-2800835-2025-10-10
  13. O que está por trás da onda de protestos de maoris na Nova Zelândia – ISTOÉ DINHEIRO, acessado em novembro 11, 2025, https://istoedinheiro.com.br/o-que-esta-por-tras-da-onda-de-protestos-de-maoris-na-nova-zelandia
  14. Resistência Māori na Nova Zelândia contra projeto de lei racista …, acessado em novembro 11, 2025, https://esquerdaonline.com.br/2024/11/16/resistencia-maori-na-nova-zelandia-contra-projeto-de-lei-racista/
  15. William fala português e elogia fundo para florestas defendido pelo …, acessado em novembro 11, 2025, https://veja.abril.com.br/economia/william-fala-portugues-e-elogia-fundo-para-florestas-defendido-pelo-brasil-na-cop30/
  16. FULL SPEECH: Prince William’s Powerful COP30 Remarks in Brazil, “Let’s Save Our Planet” | AQ1B – YouTube, acessado em novembro 11, 2025, https://www.youtube.com/watch?v=oG067dS7_x0
  17. Deputados maoris da Nova Zelândia fazem protesto “haka” em …, acessado em novembro 11, 2025, https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/deputados-maori-da-nova-zelandia-fazem-protesto-haka-em-parlamento-veja-video/
  18. [Nova Zelândia] Repreensão e Resistência: O Protesto de Te Pāti Māori, o Abstencionismo e o Caminho para a Soberania Indígena – Agência de Notícias Anarquistas – ANA, acessado em novembro 11, 2025, https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2025/07/09/nova-zelandia-repreensao-e-resistencia-o-protesto-de-te-pati-maori-o-abstencionismo-e-o-caminho-para-a-soberania-indigena/
  19. Não se trata apenas do Tratado, mas de como os Māori foram tratados. : r/newzealand, acessado em novembro 11, 2025, https://www.reddit.com/r/newzealand/comments/1f28xhd/its_not_just_about_the_treaty_its_about_how_m%C4%81ori/?tl=pt-br
  20. Por que os maoris da Nova Zelândia estão protestando contra o projeto de lei do tratado da era colonial? – INFORMA PARAÍBA, acessado em novembro 11, 2025, https://informaparaiba.com.br/2024/11/21/por-que-os-maoris-da-nova-zelandia-estao-protestando-contra-o-projeto-de-lei-do-tratado-da-era-colonial/
  21. Movimentos e organizações sociais da América Latina e Caribe …, acessado em novembro 11, 2025, https://terradedireitos.org.br/noticias/noticias/movimentos-e-organizacoes-sociais-da-america-latina-e-caribe-denunciam-os-mercados-de-carbono-frente-a-cop30/24262
  22. Nem verde, nem justa: a COP 30 e o teatro climático do capitalismo – Opinião Socialista, acessado em novembro 11, 2025, https://www.opiniaosocialista.com.br/nem-verde-nem-justa-a-cop-30-e-o-teatro-climatico-do-capitalismo/
  23. Nota política: A COP30: Ilusões no “capitalismo verde” e ataques à classe trabalhadora, acessado em novembro 11, 2025, https://emdefesadocomunismo.com.br/nota-politica-a-cop30-ilusoes-no-capitalismo-verde-e-ataques-a-classe-trabalhadora/
  24. Confissões do capitalismo “verde” | Outras Palavras, acessado em novembro 11, 2025, https://outraspalavras.net/terraeantropoceno/financas-sustentaveis-radiografia-de-uma-farsa/
  25. Crisis ecológica y lucha política: la alternativa ecosocialista | UnTER, acessado em novembro 11, 2025, https://www.unter.org.ar/wp-content/uploads/2014/07/Alternativa-ecosocialismo-Lowy.pdf
  26. Indígenas caminham para o abismo e COP não vai ajudar, afirma Daniel Munduruku, acessado em novembro 11, 2025, https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2025/11/indigenas-caminham-para-o-abismo-e-cop-nao-vai-ajudar-afirma-daniel-munduruku.shtml
  27. COP 30: o verniz verde da sujeira do capitalismo – Amazônia Latitude, acessado em novembro 11, 2025, https://www.amazonialatitude.com/2025/11/07/cop-30-verniz-verde-sujeira-capitalismo/
  28. JAQUELINE BERTOLDO . EDUARDO BRASILEIRO . GREGORY RIAL, acessado em novembro 11, 2025, http://www.editora.pucminas.br/arquivos/obra/arquivo_digital/337/capamiolo_saberes_e_praticas_ecologia_integral_1.pdf
  29. El Buen Vivir como alternativa al desarrollo. Algunas reflexiones económicas y no tan económicas – Revistas Científicas Complutenses, acessado em novembro 11, 2025, https://revistas.ucm.es/index.php/POSO/article/download/45203/46113/86507
  30. EDUCAÇÃO ECOSSOCIALISTA: provocações metacoloniais brasileiras Climério Manoel Macêdo Moraes1 Maeve Mascarenhas de Cerquei, acessado em novembro 11, 2025, https://revistas.uneb.br/diamantina/article/view/25885/16250
  31. Ecosocialismo y buen vivir: diálogo entre dos alternativas al capitalismo, acessado em novembro 11, 2025, https://www.fuhem.es/media/cdv/file/biblioteca/Analisis/Buen_vivir/Ecosocialismo_y_Buen_Vivir_Le_Quang_Vercoutere.pdf
  32. El laberinto de los discursos del Buen vivir: entre Sumak Kawsay y Socialismo del siglo XXI, acessado em novembro 11, 2025, https://journals.openedition.org/polis/10727?lang=pt
  33. Autonomias contracoloniais frente ao Capitaloceno … – SciELO Brasil, acessado em novembro 11, 2025, https://www.scielo.br/j/ea/a/YvXRtp5hvmfPTKcqxvXVwwB/?lang=pt
  34. El Buen Vivir como alternativa al desarrollo para América Latina – Biblioteca Hegoa, acessado em novembro 11, 2025, https://biblioteca.hegoa.ehu.eus/downloads/20689/%2Fsystem%2Fpdf%2F4038%2FBuen_Vivir_alternativa_desarrollo.pdf
  35. COP 30: quando a justiça climática é apenas retórica – MigraMundo, acessado em novembro 11, 2025, https://migramundo.com/cop-30-quando-a-justica-climatica-e-apenas-retorica/
  36. Mariátegui: socialismo y Buen Vivir – SciELO México, acessado em novembro 11, 2025, https://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1665-85742021000100081
  37. Para onde? – Le Monde Diplomatique, acessado em novembro 11, 2025, https://diplomatique.org.br/para-onde/
  38. La destrucción capitalista del medioambiente y la alternativa ecosocialista, acessado em novembro 11, 2025, https://www.anticapitalistas.org/ecosocialismo/la-destruccion-capitalista-del-medioambiente-y-la-alternativa-ecosocialista/
  39. AS POLÍTICAS INDIGENISTAS E AS LUTAS SOCIAIS … – Dialnet, acessado em novembro 11, 2025, https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/10090082.pdf
  40. O “Tempo do Mato” vive: A luta contracolonial Laklãnõ Xokleng em Santa Catarina, Brasil, acessado em novembro 11, 2025, https://bell.unochapeco.edu.br/revistas/index.php/rcc/article/view/8381/4293