No Coração dos Jogos Indígenas, o Esporte é Território de Resistência
O Som do Maracá no Campus: A Abertura de um Território Ancestral
Na manhã de 11 de outubro de 2025, o ar no Centro de Educação Física e Desportos (CEFD) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) estava carregado de uma energia distinta. Não era a agitação rotineira de treinos universitários, mas algo mais profundo, mais antigo. O silêncio tenso de um arqueiro mirando o alvo, o grito coletivo que explode no cabo de guerra, o som ritmado e oco de um maracá acompanhando uma corrida ritualística. Nos corpos dos atletas, grafismos ancestrais contavam histórias de pertencimento e força, transformando as pistas de atletismo e os ginásios em um território reivindicado. Ali, no coração de uma instituição academicamente ocidental, centenas de estudantes indígenas dos três estados do Sul do Brasil abriam a segunda edição dos Jogos Universitários Indígenas da Região Sul (JUIRS), um evento que transcende a competição para se afirmar como um ato político e uma celebração da vida.1
Sumário
A solenidade de abertura, marcada para as 8h, deu início a dois dias de intensa programação esportiva e cultural, com as competições começando logo às 9h.1 A escolha do CEFD como palco principal não foi trivial. Ao ocupar a principal infraestrutura esportiva da universidade, os organizadores fizeram uma declaração implícita: as práticas corporais e culturais indígenas não são folclore a ser observado à margem, mas sim saberes e tradições que merecem centralidade e respeito dentro do espaço acadêmico.1 A decisão de abrir o evento a todos os públicos, “sejam indígenas ou não indígenas”, reforçou essa mensagem, transformando os jogos em um convite ao diálogo, uma ponte para que a comunidade universitária mais ampla pudesse testemunhar e aprender com a riqueza cultural ali presente.1
O lema da edição de 2025, “Esporte como Resistência”, funcionou como a espinha dorsal conceitual do evento, sintetizando seu propósito fundamental. A frase, estampada em materiais de divulgação e ecoada nos discursos, encapsulava a luta dos povos originários por visibilidade, direitos e pela própria existência dentro e fora dos muros da universidade.2 Para os estudantes-atletas, o esporte tornava-se uma linguagem de afirmação. Cada lança arremessada, cada tora carregada, cada gol marcado era uma manifestação de resiliência contra séculos de apagamento. O objetivo, conforme articulado pela organização, era transformar o espaço acadêmico em um “território de ancestralidade e celebração coletiva”, um lugar onde as identidades indígenas não são apenas toleradas, mas ativamente celebradas e fortalecidas.2
Este processo de transformação do espaço físico em território simbólico é um dos aspectos mais profundos dos JUIRS. Historicamente, as universidades brasileiras foram projetadas como centros de saber eurocêntrico, funcionando muitas vezes como ferramentas de assimilação que exigiam dos estudantes indígenas o abandono de suas referências culturais para se adaptarem a um novo ambiente. A presença crescente de estudantes indígenas, fruto de políticas de ações afirmativas, começou a desafiar essa estrutura, mas eventos como os JUIRS levam esse desafio a um novo patamar. Ao trazerem práticas como a “corrida com tora” ou o “arco e flecha” para o cotidiano universitário, os estudantes não estão apenas jogando; estão reescrevendo as regras de uso e o significado daquele espaço. Eles demonstram que a universidade pode e deve ser um lugar plural, capaz de abrigar e valorizar múltiplas formas de conhecimento e expressão. Assim, os JUIRS não são um evento que acontece meramente na universidade; são um ato de transformar a universidade, demarcando-a, ainda que temporariamente, como um território onde a ancestralidade indígena é a protagonista.
Mais que Jogos: A Universidade como Arena de Luta e Celebração
Para compreender a real dimensão dos JUIRS, é preciso olhar para além das competições e entender o “porquê” de sua existência. O evento é uma resposta direta e criativa aos desafios complexos enfrentados pelos estudantes indígenas no ensino superior. Leonardo Kaingang, que atuou como diretor-geral na organização da primeira e segunda edição, capturou a essência do projeto em uma declaração fundamental: “os Jogos não são simplesmente a prática de esportes, mas sim toda a cultura que a gente traz dos territórios para dentro da universidade”.3 Esta frase revela o evento como uma ponte vital entre dois mundos que, para muitos estudantes, permanecem em tensão: a comunidade de origem e o ambiente acadêmico.
O principal objetivo dos jogos, conforme declarado pelos organizadores, é “fortalecer os laços de cultura entre os povos indígenas, promovendo, incentivando e valorizando as manifestações esportivas e culturais”.4 Este propósito está intrinsecamente ligado a uma das questões mais críticas para as políticas de inclusão no ensino superior: a permanência estudantil. As notícias sobre o evento destacam repetidamente sua importância para celebrar não apenas o esporte e a cultura, mas também a “permanência estudantil na UFSM”.2 A jornada de um estudante indígena na universidade é frequentemente marcada por barreiras que vão muito além das dificuldades acadêmicas. O isolamento cultural, o choque com um ambiente que desvaloriza seus saberes, o preconceito e o racismo estrutural são fatores que contribuem para altas taxas de evasão.
Nesse contexto, os JUIRS funcionam como uma poderosa estratégia de permanência. A universidade, por meio de órgãos como a Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PRAE), oferece suporte material essencial, como alimentação e alojamento para as delegações visitantes.1 No entanto, o que os jogos proporcionam é um tipo diferente de suporte, igualmente crucial: o fortalecimento psicológico, cultural e social. Ao reunir cerca de 400 participantes, entre estudantes, lideranças e aliados de três estados 2, o evento cria uma rede de apoio e pertencimento. Durante aqueles dois dias, o estudante indígena deixa de ser uma minoria isolada em sua sala de aula e passa a ser parte de uma comunidade vibrante e afirmativa. Essa experiência de validação coletiva é um antídoto potente contra o sentimento de alienação que ameaça sua trajetória acadêmica.
A origem dos JUIRS reforça seu caráter político e sua conexão com um movimento mais amplo. A ideia não surgiu em um gabinete universitário, mas sim em uma roda de conversa entre estudantes da Região Sul durante o Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília.3 O ATL é a maior e mais importante mobilização dos povos indígenas do Brasil, um espaço de articulação política e luta por direitos territoriais e sociais. Ao nascer nesse contexto, os jogos já carregam em seu DNA a marca do ativismo e da organização coletiva. Eles são uma manifestação local de uma luta nacional, traduzindo as pautas do movimento indígena para o contexto universitário.
Portanto, o evento representa uma evolução do conceito de “permanência” para algo que se pode chamar de “permanência com pertencimento”. Não se trata apenas de garantir que o estudante indígena não abandone o curso, mas de criar as condições para que ele se sinta parte integrante e valorizada da comunidade acadêmica, sem precisar renunciar à sua identidade. Os jogos são a materialização dessa ideia. Neles, os estudantes não estão apenas sobrevivendo em um ambiente muitas vezes hostil; estão ativamente o transformando, ocupando-o com suas culturas, seus corpos e suas vozes, e demonstrando que a diversidade é a verdadeira força de uma universidade pública e inclusiva.
A Segunda Edição em Foco: Consolidação e Crescimento
A realização da segunda edição dos JUIRS em outubro de 2025 marcou não apenas a continuidade, mas a rápida consolidação do evento como um marco no calendário acadêmico e cultural da Região Sul. A análise comparativa com a edição inaugural, ocorrida em 2024, revela um crescimento expressivo em múltiplos indicadores, demonstrando a força da mobilização estudantil indígena e o acerto da aposta institucional da UFSM em sediar o projeto.2
Um dos dados mais eloquentes é o aumento no número de participantes. Enquanto a primeira edição reuniu aproximadamente 300 acadêmicos e membros de comunidades 3, a segunda edição viu esse número saltar para cerca de 520 pessoas.2 Esse crescimento de aproximadamente 73% em apenas um ano é um testemunho do entusiasmo gerado pelo evento e de sua crescente relevância para os estudantes indígenas da região. O aumento reflete não apenas um maior interesse, mas também uma maior capacidade de organização e mobilização por parte da Comissão Indígena da UFSM, que esteve à frente da organização.2
A rede de instituições de ensino superior envolvidas também se expandiu, solidificando o caráter interuniversitário dos jogos. Na primeira edição, participaram coletivos de importantes universidades federais como a UFSM, Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Universidade Federal do Pampa (Unipampa), Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).3 A segunda edição manteve essa base sólida e a ampliou, incluindo a participação da Universidade Federal do Paraná (UFPR), completando assim a representação de todas as principais instituições federais dos três estados do Sul.2 Essa abrangência geográfica e institucional é fundamental para o objetivo de criar uma rede de solidariedade e articulação política entre os estudantes indígenas da região.
A conexão com as comunidades de origem, um pilar do evento, foi mantida e reforçada. Tanto na primeira quanto na segunda edição, os jogos contaram com a presença de representantes de territórios indígenas, como Guarita, Kaingang e Guarani, que se juntaram aos estudantes universitários nas competições e celebrações.2 Essa integração é crucial, pois garante que o evento não se torne uma iniciativa isolada do contexto mais amplo das lutas indígenas, mantendo os estudantes acadêmicos enraizados em suas comunidades e suas culturas.
A estrutura organizacional também demonstrou amadurecimento. Se a primeira edição foi impulsionada por um grupo de estudantes com o apoio crucial da gestão da UFSM, a segunda foi formalmente organizada pela Comissão Indígena da UFSM.2 Essa transição indica um fortalecimento da autonomia e do protagonismo estudantil. Ao mesmo tempo, o apoio institucional se manteve robusto e até se ampliou, envolvendo as pró-reitorias de Assuntos Estudantis (PRAE) e de Extensão (PRE), o Gabinete do Reitor, o Observatório de Direitos Humanos (ODH) e a Federação Universitária Gaúcha de Esportes (FUGE).1 Essa parceria entre a organização estudantil e a administração universitária tem sido a chave para o sucesso e a sustentabilidade do projeto.Como um reflexo do forte engajamento de sua comunidade indígena, a UFSM sagrou-se campeã geral dos jogos pelo segundo ano consecutivo, um feito celebrado pela instituição anfitriã.2 A tabela a seguir resume a evolução dos JUIRS, ilustrando visualmente sua trajetória de crescimento e consolidação.
Todas as Fotos
Veja todas as fotos tiradas pela equipe Caipora Etnomídia no drive: https://drive.google.com/drive/folders/1kojA6So9Map83Qn332_rjB-hUvDW5Uzc?usp=sharing
Fotógrafos: Antonio Katote Kaingang, Julia Goj Jur, Leticia Xakriabá, Thainá Amaral Kaingang, Kauã Amaral Kaingang, Xainã Pitaguary, João Batista
Referências citadas
- UFSM recebe neste fim de semana a 2ª edição dos Jogos Universitários Indígenas da Região Sul, acessado em outubro 22, 2025, https://www.ufsm.br/2025/10/10/ufsm-recebe-neste-fim-de-semana-a-2a-edicao-dos-jogos-universitarios-indigenas-da-regiao-sul
- Jogos Universitários Indígenas da Região Sul celebram esporte …, acessado em outubro 22, 2025, https://www.ufsm.br/2025/10/15/jogos-universitarios-indigenas-da-regiao-sul-celebram-esporte-cultura-e-permanencia-estudantil-na-ufsm
- Na UFSM, Jogos Universitários Indígenas da Região Sul …, acessado em outubro 22, 2025, https://www.ufsm.br/2024/10/16/na-ufsm-jogos-universitarios-indigenas-da-regiao-sul-engrandecem-a-cultura-de-diferentes-etnias
- UFSM recebe a 1ª edição dos Jogos Universitários Indígenas da Região Sul, acessado em outubro 22, 2025, https://www.ufsm.br/2024/10/10/ufsm-recebe-a-1a-edicao-dos-jogos-universitarios-indigenas-da-regiao-sul
- juirs – Busca – UFSM, acessado em outubro 22, 2025, https://www.ufsm.br/tag/juirs
- ESPORTE. Jogos Universitários Indígenas da Região Sul serão …, acessado em outubro 22, 2025, https://claudemirpereira.com.br/2024/10/esporte-jogos-universitarios-indigenas-da-regiao-sul-serao-realizados-neste-fim-de-semana-na-ufsm/
- edital nº 049/2025 – seleção de membros bolsistas e não … – UFSM, acessado em outubro 22, 2025, https://www.ufsm.br/app/uploads/sites/414/2025/04/EDITAL-No-049_2025-%E2%80%93-SELECAO-DE-MEMBROS-BOLSISTAS-E-NAO-BOLSISTAS-PARA-O-PROJETO-REVISTA-CAIPORA-%E2%80%94-ETNOMIDIA-INDIGENA-3.pdf
- chamada interna caipora nº. 01/2023 – UFSM, acessado em outubro 22, 2025, https://www.ufsm.br/app/uploads/sites/414/2023/03/Resultado-Chamada-bolsistas-2023-_Caipora-_assinado.pdf
- CHAMADA INTERNA Nº. 01/2023 OBSERVATÓRIO DE DIREITOS …, acessado em outubro 22, 2025, https://www.ufsm.br/app/uploads/sites/414/2023/03/Modelo_Chamada_Interna_para_bolsistas_2023-odh-_Caipora_assinado-2.pdf
















































































































































































































