Senado tenta desmontar a demarcação indígena com o PDL 717/2024
Na manhã de 29 de maio de 2025, enquanto lideranças indígenas acompanhavam em silêncio o avanço da pauta na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, um projeto com aparência técnica foi aprovado por 15 votos a 11. O nome não chama atenção: PDL nº 717/2024. Mas seu conteúdo tem potencial explosivo. Ele suspende os efeitos de duas portarias do Ministério da Justiça — nº 545 e nº 546 — que reconhecem a ocupação tradicional de dois territórios indígenas em Santa Catarina: a Terra Indígena Toldo Imbu, do povo Kaingang, e a Terra Indígena Morro dos Cavalos, do povo Mbya Guarani.
É a primeira vez desde a redemocratização que o Congresso Nacional avança em uma proposta explicitamente voltada a reverter demarcações indígenas com base legislativa, mesmo depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) já ter declarado a tese do Marco Temporal inconstitucional. O gesto é simbólico e perigoso: transforma um precedente político em arma legal para suspender ou até reverter centenas de processos similares em curso.
As duas portarias suspensas não são qualquer documento. Ambas foram editadas em 2024 após décadas de litígios, estudos técnicos e pressão popular. A portaria nº 545 reconhecia 1.400 hectares em Abelardo Luz (SC), território ocupado ancestralmente pelos Kaingang de Toldo Imbu. A portaria nº 546 reafirmava a continuidade do processo de demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos, em Palhoça (SC), onde vivem dezenas de famílias Guarani Mbya. A Funai já havia publicado o relatório de identificação da área ainda em 2008.
Ao colocar esses dois territórios na mira, o senador catarinense Esperidião Amin (PP), autor do PDL, atendeu diretamente aos interesses de políticos e produtores rurais da região Sul, onde a resistência à demarcação é articulada há décadas. Mas, ao mesmo tempo, lançou um balão de ensaio institucional: se o Senado conseguir suspender atos administrativos baseados na Constituição e em decisões do STF, que tipo de precedente estará criado?
“O que está sendo testado aqui é a viabilidade política de rasgar o sistema jurídico brasileiro usando o Congresso como porta de entrada”, avalia um jurista ouvido pela reportagem sob condição de anonimato.
O argumento central do PDL é a tese do Marco Temporal, segundo a qual os povos indígenas só teriam direito a terras que ocupavam em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. O STF rejeitou essa tese por maioria em 2023, ao julgar o RE 1.017.365 (caso do povo Xokleng, também de Santa Catarina), afirmando que o direito indígena à terra é originário, não condicionado à presença física em uma data arbitrária.
Mesmo assim, o Congresso aprovou meses depois o PL 2903/2023, transformando a tese em lei ordinária. Agora, com o PDL 717, o Senado avança sobre atos administrativos do Poder Executivo, ignorando a decisão do STF e fragilizando ainda mais o sistema de freios e contrapesos. A manobra se dá sem passar por julgamento de mérito nas instâncias jurídicas — apenas por articulação política.
As consequências já começaram a ser sentidas nas comunidades indígenas. Para os Kaingang de Toldo Imbu, o receio é que o fim da portaria reabra conflitos fundiários com fazendeiros locais. O mesmo vale para os Guarani Mbya, que vivem há décadas sob constantes ameaças no Morro dos Cavalos.
“A gente sabe como isso começa. Primeiro tiram a portaria, depois cortam os serviços, depois dizem que não temos mais direito, e aí vem a polícia ou os pistoleiros”, disse uma liderança Guarani, que pediu anonimato por medo de represálias.
A Terra Indígena Morro dos Cavalos é, desde os anos 2000, um dos principais alvos da bancada ruralista no Sul. Seu processo de demarcação foi citado nominalmente em discursos no Congresso, e já foi tema de ações na Justiça Federal, em tentativas frustradas de anulação da portaria de 2008. Agora, com o PDL 717, essa ofensiva pode finalmente encontrar respaldo formal.
Segundo análise do Instituto Socioambiental (ISA), o Senado, ao aprovar o PDL 717, está não apenas suspendendo uma portaria, mas “tentando reescrever o rito legal da demarcação de terras no Brasil”. O PDL cria uma brecha perigosa para que qualquer parlamentar, em qualquer estado, proponha a revogação de demarcações por razões políticas, sem base técnica ou consulta aos povos envolvidos.
Em nota, o Ministério dos Povos Indígenas afirmou que o PDL “compromete a segurança jurídica dos processos demarcatórios” e representa “grave ameaça aos direitos garantidos no Artigo 231 da Constituição Federal”.
A reportagem apurou que a aprovação do PDL 717 foi costurada diretamente entre integrantes da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) e senadores da base bolsonarista, com apoio de figuras influentes como Tereza Cristina (PP-MS) e Hamilton Mourão (Republicanos-RS).
Internamente, o projeto é tratado como “modelo de reação contra a Funai e o Ministério dos Povos Indígenas”, segundo uma fonte da bancada. A mesma fonte confirma que há outros PDLs sendo preparados, inclusive mirando terras indígenas no Mato Grosso e no Pará.
O projeto segue agora para votação no plenário do Senado, o que pode ocorrer ainda em junho. Caso seja aprovado, a suspensão das portarias se tornará efetiva, sem necessidade de sanção presidencial. Isso porque projetos de decreto legislativo têm efeito autônomo.
Se confirmado, o PDL abrirá caminho para que mais de 700 terras indígenas com processos abertos em todo o país fiquem vulneráveis a iniciativas semelhantes. Para movimentos indígenas e juristas, trata-se do maior ataque institucional às demarcações desde a ditadura militar.
Na avaliação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o que está em jogo com o PDL 717 não é apenas o destino de dois territórios, mas o futuro do direito indígena no país. A entidade já convocou mobilizações para as próximas semanas e promete acionar o STF para barrar a medida.
“Estamos diante de um Estado que tenta legalizar o esbulho. Se deixarmos passar, será o fim da Constituição de 1988 para nós”, diz Dinaman Tuxá, coordenador executivo da Apib.
A reportagem continuará acompanhando os desdobramentos da tramitação e ouvirá as comunidades diretamente afetadas.
📎 Documentos obtidos e analisados:
Portarias MJSP nº 545/2024 e nº 546/2024 Texto integral do PDL 717/2024 Julgamento do RE 1.017.365 (STF – Marco Temporal) Notas oficiais do MPI, ISA e Apib Relatórios de identificação da Funai sobre Toldo Imbu e Morro dos Cavalos





